

Da água para o Vinho
O que público leitor vai ganhar com uma matéria que conta a história de uma degustação de vinhos feita por especialistas em analisar água, gente que entende de aromas e sabores, mas não entende de vinho? As experientes provadoras oficiais da água da SABESP, Izabel, Rosangela e Andreia se entusiasmaram com a idéia e os editores da revista idem!
Em primeiro lugar porque acreditam firmemente no exercício democrático do gosto e esta é uma oportunidade de ouro para refletir sobre a atividade de analisar um vinho com mais distanciamento crítico. Ou seja, todo indivíduo, especialista ou não, tem o direito inalienável de concordar ou discordar do gosto de seu vizinho de taça! Pelo contrário, o provador profissional não é um mágico nem superdotado, ser especial, capaz de detectar centenas de aromas e paladares num único gole, é apenas alguém que aprendeu a degustar.
Em segundo lugar pela certeza de que mesmo em se tratando de profundo treinamento sensitivo nem sempre o especialista em vinho consegue explorar todas as sensações, um pouco porque, comprovadamente, nenhum ser humano é capaz de detectar todas as moléculas aromáticas do vinho e um pouco porque esta vida de degustações quase diárias tende a viciar a análise das amostras, tende a criar uma predisposição a fazer aproximações de tipicidade, antes mesmo da degustação. Você já vai achando pimentão verde por aqui, framboesa por lá, só de ler quais os vinhos que serão degustados…
Em terceiro lugar ficou a curiosidade jornalística de descobrir como se dá a análise degustativa de especialistas do gosto e do cheiro enquanto defeito sobre nosso objeto de desejo, o vinho. Pois se para nós, as maravilhosas combinações de aroma e sabor são atributos para lá de positivos, para elas não.
Até porque, vamos nos entender, muitos milênios antes de serem aparelhos de prazer, olhos, nariz e boca são sensores de defesa, prontos a defender o corpo do ser humano contra o podre, o acre venenoso, o dejeto, o fogo que se espalha colocando em risco a comunidade, o trotar dos bisontes que podem tudo destruir pelo caminho. São cheiros, rumores e sabores de força atávica, preparados para discernir o que é bom e o que não é para consumir, para manter a saúde, para sobreviver.
Portanto, o corpo está naturalmente preparado tanto para a rejeição quanto para o prazer, mesmo que o distanciamento da natureza e os caminhos trilhados pela civilização nos deixe enferrujados, em todos os sentidos.
Da água para o vinho, o pessoal da SABESP mostrou-se indiscutivelmente preparado e não teve qualquer dificuldade em identificar aromas e sabores, assim como soube inverter o vetor de suas análises, para considerar benesse perfumes e sensações de paladar que, em situação profissional, considerariam defeitos!
A DEGUSTAÇÃO
As moças não se intimidaram com as taças, rótulos ou fama dos especialistas presentes. Falaram grosso sobre tudo, com muita segurança e sem meio termos, mostrando que têm aptidão e treino para a coisa.
E foi neste falar grosso que se apresentou a primeira grande diferença – o degustador do vinho costuma ser muito cuidadoso na crítica aos produtos que analisa, pois sabe que sua avaliação altera comercialmente o vinho, que ganha ou perde mercado dependendo desta avaliação e dependendo da importância midiática do analista. No limite, a cada nota acima de 92 dada pelo Roberto Parker, o mais notável degustador, determinado vinho ganha importância de mercado e cria procura renovada nos consumidores. Ao contrário, se um produto recebe uma nota menos importante, o vinho analisado pode cair no esquecimento, como tantas vezes acontece. Por isso há uma ética consagrada que não permite comentários destruidores de formadores de opinião, até porque atrás de um vinho tem gente trabalhando, tem interesses de toda ordem que não devem ser levianamente deixados de lado.
No caso da água, não há qualquer ambiguidade política – a consciência do analista está 100% ao lado do consumidor. Só importa que aquela água analisada esteja em ótimas condições de consumo, o resto é lixo!
Estamos, nós, gente do vinho, tão acostumados a rodar a taça à procura de um aroma cítrico, de um xixi de gato voando no ar, que tendemos a aproximações pré-classificatórias, pré-determinando resultados.
Com certa surpresa, viu-se as três especialistas da água esbanjarem comentários pertinentes, mesmo que usando uma linguagem própria à analise da água.
No meio aos aromas prazerosos, souberam apontar sem perdão excessos defeituosos de álcool, adstringência, aromas medicinais e outros aspectos nada tão positivos.
Por certo, nem tudo é delicioso no mundo dos aromas e sabores do vinho. Entre eles, é comum encontrar defeitos, desde o mais natural – quando o vinho se torna vinagre por falta de estrutura para aguentar a passagem do tempo ou por mal acondicionamento – ao mais artificial – quando o vinho está cheio de químicas de conservação ou foi afetado por algum fungo no processo produtivo… E é tarefa do degustador indicar estas incorreções.
Mas, na maioria das vezes, o que se identifica num vinho são seus atributos positivos, mesmo que estes sejam mutáveis, permeáveis à moda. Pois no pêndulo do tempo, o bom vinho na Grécia Antiga e no Império Roma era diluído em água e protegido por resinas. Nos séculos que a Inglaterra e a França disputaram Bordeaux, vinho era um clarete de pouca concentração alcóolica. Na França e na Itália do começo do século XX, vinhos bom era aquele que apresentava taninos vivos e ótima harmonização com a comida. Na década de 70 do século XX, os vinhos ganharam um outro patamar de sofisticação, tornaram-se redondos, alcóolicos e cheios de madeira, para competir com os destilados que sempre foram bebidas de reflexão, que raramente iam à mesa. Hoje a tendência é serem mais frescos e naturais.
O Marcelo Copello escolheu uma gama de vinhos propositalmente variado: Gamay da Salton, Syrah de um inesperado excelente produtor goiano, o rosé da Villa Francione que acabou de ganhar o prêmio Top Ten da Feira, um orgulhoso Riesling seco austríaco, um português nascido de um enólogo australiano, finalizando com um Porto Ruby. Gama para nenhum degustador botar defeito.
As preferências ficaram entre o Riesling alemão, o rosé de Santa Catarina e o Syrah goiano. Abaixo, a análise compilada das três degustadoras sobre os seis vinhos, que trocaram a água pelo vinho, ao menos por um dia. :
- Gamay – Cor rubi claro, salgado, álcool muito acentuado na boca, pouco corpo, pungente
- Syrah – Cor vermelho intenso, odor de vegetação, o álcool irrita as papilas, picante, madeira, amargo
- Rosé – Cor salmão, Frutal, abacaxi, cítrico, erva doce, gaseificado, doce e ácido
- Riesling – Cor amarelo claro, legumes cozidos, vegetal em decomposição, salgado, carambola, sabor efervescente, uva doce, pera, pêssego
- Tinto alentejano – Cor vermelho intenso, odor de terra, beterraba, vegetação, adocicado, madeira, couro, ameixa, tabaco, queimado, salgado no início, doce no final da boca. Cor marrom claro, odor medicinal desagradável, cera, licoroso, uva seca, doce demais, irritante
Tudo novo na terra do Nouveau.
No lugar onde um dia parecia ter havido apenas Beaujolais Nouveau, 510 famílias se reuniram para produzirem 70 000 hectolitros por ano, em 12 denominações diferentes, com 3 vinícolas tradicionais da região: Chateau Pièrres Dorées, Chateau de Chénas e Chateau des Loges. Produtores da maior elegância e pretensão, alguns vinhos frescos – longe da jovialidade fugaz dos Nouveau. Vinhateiros que procuram importador entre nós, para chegar às nossas gondolas custando de R$50,00 a R$200,00..
Entre eles, uma primeira grande e agradável surpresa – um Beaujolais Blanc 2011 Terra ICONIA que ganhou a médaille or Macon/médaille OR Chardonnay du Monde 2013, concorrendo com produtores do mundo inteiro, inclusive com produtos da vizinha Borgonha!
E esta surpresa foi seguida por algumas outras, particularmente a que causou o Moulin a Vent Coeur de Granite que saiu da tipicidade dos melhores Beaujolais e foi se colocar no escaninho dos vinhos de guarda, com bela estrutura e corpo, tirando da uva Gamay, responsável por todo beaujolais tinto, qualidades dantes jamais imaginadas.
Imagino que o Duque Philippe, Le Hardi, quando expulsou o Gamay de sua nobre terra oriental borgonhesa, nos limites de Dijon e Beaune – no finzinho dos anos 1300 – não imaginava seu potencial, pois se prestava a vinhos simples demais, parentes diretos dos polêmicos Nouveaux, vinhos de entrada de gama, vinhos para quem não toma vinho, conexão direta com o suco de uva.
De fato, muitos séculos depois, a partir de meados dos anos 1800, os Beaujolais ganharam certa consistência e se diferenciaram daquele vinho ralinho e super jovem – tataraneto do Beaujolais Noveau – em mais de 50 localidades acima de Lyon, que ganharam o nome de Beaujolais Village, seja por mérito de qualidade, seja por força política de seus produtores. Depois desses, 10 vilarejos se destacaram ainda mais e ganharam o direito de colocar seu nome no rótulo no lugar do nome regional, o que foi decidamente referendado pela legislação dos 1960: Brouilly, Chiroubles, Côte de Brouilly, Juliénas, Régnié, Chénas, Saint-Amour, Fleurie, Morgon e Moulin à Vent.