Don Quixote dos vinhos – a importação dos improváveis

Advogar em causa própria nunca foi exatamente minha praia, publicitário que fui, em defesa dos atributos dos produtos alheios às minhas posses. Nem para vender apartamento meu, fui bom, enquanto sempre soube o que fazer para valorizar o que é do outro.

Por isso, venho a público de modo modesto, com um jeito meio de viés, para tergiversar sobre os primeiros vinhos que ouso importar, por conta e risco. Mas não tão perdido assim, porque pretendo ser ungido, conhecedor do caminho das pedras. Será?

Vim desde a Beira Interior, um lugar nem tão perdido da Península Ibérica, em particular em Portugal, mais precisamente na face sul da Serra da Estrela, onde o calor beira os 45 graus centígrados e o frio menos 15, menos 20. Em linguagem de uva, esta extensa paleta térmica significa boa chance de concentração de açúcares.

Vim portando uvas esdrúxulas não apenas para os nossos olhos mega urbanos acostumados a tudo, mas – pasmem – inclusive aos próprios parentes, que há muito abandonaram as ditas, a saber, Rufete, Marufa, Jaén.

Presença da Rufete em Portugalpresença da Rufete em PortugalPois Rufete, conhecida (?) por Tinta Pinheira e reconhecida pelos cantos de Castilla Y Leon já não ocupa sequer 0.1% da área plantada por vitivinícola no nosso país irmão. A Jaén, chamada de Galega, Mencia ou Gião no Douro, tem um público um pouco mais extenso, mas sem exageros, por favor, pelo amor dos céus! Está de posse, entre todos os nomes aí auditados de menos de 1,5% do território da Península, incluindo a Mencia, citada Espanha afora, como nos conta o site Vine to Wine Circle, o mesmo que relata friamente que a Marufa segue o mesmo caminho em direção a extinção, apesar dos nomes que porta pelas terras sugerida no Levantado do Chão – Abrunhal, Falso Mourisco, Uva-Rei! Rei de onde, uma uva que nem se fala mais? Rei no Trás os Montes, região pouco falada no mundo do vinho?

O que me salva é que vim com garrafas cheias de procedimentos comuns aos melhores. Fermentação malolática tem? Tem sim senhor. Carvalho francês Allier Tosta Fina? Tem Sim senhor. Uvas reconhecíveis pelos comuns dos mortais como Touriga Nacional, Tinta Roriz e até a improvável Syrah? Tem sim senhor.

Vim com quatro rótulos espalhados por milhares de garrafas, que me espantam quando vejo o que significam em esforço de venda, em arrolhamento, em cuidados com a estocagem, com o controle contábil, tudo ou quase tudo tão estranho para quem lida com a crítica, além do saudável levantamento de taça diário.

QT Reserva do Patrão 2009Dos rótulos, a distinta Syrah eleita como a favorita do Patrão da Quinta, ótima concentração, boa personalidade, boa apresentação com orgulhosas medalhas acopladas ao rótulo, um ano de madeira francesa de primeiro uso, dois anos de descanso engarrafado.

100% Rufete100% RufeteJunto com ele, o rótulo, disputando a tapas o espaço nobre do display expositor, o Talhão da Serra, meu encanto, minha víbora hipnótica, a conquistadora de containers, por quem me esfolei até atingir a importação. Um vinho menos para o improvável e mais para o impossível, pois feito integralmente de uma uva que está fadada a inexistir, a citada Rufete, a pequenina e abandonada Rufete, a querer provar que merece mais oportunidade para não deixar de existir.

Como um Don Quixote, surpreendo-me com as injustiças cometidas pelos deuses deste mundo, que tanto favorecem as Cabernet Sauvignon, Merlots etc da vida e tanto se esquecem de uvas como esta que, servil, quando instada a obrar, mostra todo um potencial sutil, gostoso na boca, delicado no nariz.

O resto é o que nos sustenta, o pão do dia-a-dia que suporta o caviar das datas nobres.

QT Forja do Ferreiro 2010Dois rótulos, um de acordo com as uvas aceitas pela regionalidade, com uma tonelagem por hectare registrada em 10, o Forja do Ferreiro, homenagem à Beira, vinho de cooperativa, fruto da comunhão entre os homens daqueles campos.

QT DOC 2010

O outro, mais nobre, pois onde lá tem 10, aqui tem 6, onde lá tem comunhão, aqui tem exclusividade, fruto de parreiras próprias que é.

Contra os moinhos de vento acionados pelos grandes e poderosos Douro, Alentejo, Dão e Minho; contra as armaduras dos grandes e dos estabelecidos, com os milhões e os bilhões, contraponho as centenas, o milhar, aqui me apresento, a mim e meus fiéis escudeiros.

Olé?!

4 comentários em “Don Quixote dos vinhos – a importação dos improváveis

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