Assim como Papai Noel existe, Don Perignon inventou o vinho borbulhante.

Em época de festas, ouve-se o espoucar das garrafas de espumante se abrindo, da periferia mais socialmente marginalizada aos palácios mais exclusivos, próprios de quem transformou acumulação primitiva em respeitabilidade há muitas gerações.

Veuve_clicquotTodos seguem um caminho exemplar – o da nobreza russa seduzida pelos dotes da senhora Clicquot e confirmada por Hollywood no auge – com gente tecendo loas às bolinhas, gente do peso da Ingrid Bergman, Marlin Monroe and so on.

Podem variar em quantidade de açúcar residual, mesmo entre as mais caras, num gradiente que vai de nenhuma adição dita Nature, passando por brut a demi-sec. Pode ser feita com uma única safra ou com mistura de safras, pode ser feita com a mistura de uvas para vinho tinto e branco, ou com uvas para tinto em cor rosada e branca (noir de rose, noir de blanc), como podem ser feita a partir de apenas uvas de vinho branco (blanc de blanc). Mas vai até ai as variações, sendo raríssimos os casos de vinhos espumantes tintos.

As borbulhas do vinho nem sempre foram tão desejadas, nem sempre foram protegidas por denominações, nem sempre foram produzidas propositalmente, nem sempre fizeram parte dos presentes distribuídos pelo Papai Noel.

Mas elas sempre estiveram lá, desde que na Abadia de Saint Hilaire, próxima de Carcassone, ao lado dos Pirineus franceses, aprisionaram o gás carbônico em garrafa antes de finda a fermentação da uva, no ano de 1531, um século e três  décadas antes de Don Perignon e sua mística “descoberta do vinho em borbulhas”, fruto da imaginação e ignorância de algum publicitário de plantão na época.

O fato é que são as borbulhas e não o gosto específico do vinho gaseificado que lhe dá prestígio e oportunidade. Não há festa que não se requinte quando as bolinhas aparecem nas taças especiais, seja simplesmente no coquetel que abre os serviços gastronômicos seja na refeição do começo ao fim.

sparklingwine640x210Estamos portanto falando de aparência de festa, de cara de festa, antes do gosto de festa. E, se o ritual de serviço for completo, estaremos falando ainda mais da taça e do barulho característico das borbulhas, mais do que é, aquilo que parece ser.

Dito de outra forma, os quesitos sensoriais que envolvem a aparência (visão) e os sons (audição) do espumante festivo valem ao menos tanto quanto os outros sentidos, cheiro (nariz) e gosto (boca), fazendo da bebida um produto organoléptico diferente das outras bebidas.

No fundo, mais importante do que a bebida é a aparência de festa chique que a ela é atribuída. Por isso, na grande maioria das vezes, a aparência começa no design da garrafa, que sempre lembra a champanhe, seja ela espumante brasileiro, cava espanhola, sparkling americana, prosecco ou Asti italianos.

É assim que champagne e seus preços inacessíveis é substituída pela champanhota, pelo espumante que pode ser nobre como um cremant da vizinha Borgonha, tão bom quanto mas menos conhecido e desejado, como pode ser totalmente despretensiosa como uma Cidra de qualidade duvidosa, como a feita no Brasil, a Cereser.

CidraDigo assim, porque fermentados de maçã são comuns na Europa, sendo que muitos são de ótima qualidade, teor alcoólico e tudo que se tem direito. Algumas brut, ou seja, com pouquíssimo açúcar residual, podem e devem frequentar as mesas mais sofisticadas, de gente que procura conhecer o que há de melhor.

No meio do caminho entre a champagne e a Cidra Cereser, há tanto para se optar, a começar pela grande invenção da Cia de Bebidas Antártica – nos anos pós-guerra – a Guaraná Champagne – que teve este nome enquanto não foi obrigada a retirar o Champagne do nome. GuaranáCom este produto, podiam brindar inclusive as crianças, pois o refrigerante borbulhava numa cor dourada, perfeitamente confundida com a nobre bebida aludida.

Temos desde os frisantes que mal atingem pressão suficiente para fazer a rolha pular, até várias bebidas de personalidade própria, além de outras tantas, boas imitações da champagne.

Entre as de personalidade própria, é forçoso realçar a popularidade de duas bebidas italianas, uma tradicional do Piemonte e outra do Vêneto. Ambas são muito bem aceitas no mundo inteiro, por serem agradáveis, fáceis, com a vantagem de ter a aparência nobre das champanhes:

Moscato_d'astiA do Piemonte, a Asti Spumanti, cuja DOC foi estabelecida ao mesmo tempo que a do Chianti, em 1932, cuja técnica de produção consiste em congelar o processo de fermentação, deixando um residual de açúcar. Ela é tão notória que há anos é um dos ítens mais importantes entre as mercadorias exportadas da Itália para a Alemanha.

ProseccoA outra ganhou o mundo como uma versão simpática e acessível, e que continua fazendo estrada – a Prosecco da região em torno de Valdobiadene e Conegliano, com seus 11% de álcool feita da uva autóctone Gerla, sua transparência quase total, seu leve adocicado e seu preço pra lá de razoável, pois mesmo as que são revestidas de grandes e pesadas garrafas, não sustentam preços muito exagerados (a que o Fasano trazia antes de ser comprada pela Worldwine custava para mais de R$120,00 mas era um caso único).
Juve&Camps
Além do Prosecco e do Asti Spumanti, outra versão borbulhante com personalidade própria é importante e com produção suficiente para se fixar no mercado mundial é a Cava espanhola, que nasceu na Catalunha, a partir das uvas Macabeo e Xare-lo, para hoje poder ser produzida em mais algumas outras regiões da Espanha, como Rioja, num acordo entre produtores de quatro regiões que queriam se matar por conta da espuma produzida em seus vinhos. Original nas uvas, imitação na vinificação. São muitas vezes ótimas champenoises, o método de produção consagrado pela champagne.

Bulle nº1Outra que não pode ser imitação é a Blanquette de Limoux, que nasceu antes da champagne, como aquela citada acima, que criou a borbulha: a de Sieur d’Arc, a Bulle nº1. As uvas permitidas são próprias, portanto, além de tudo, tem seu método e uvas originais.

As imitações são muitas, algumas delas de grande qualidade como as feitas na Califórnia, na Austrália e particularmente no Brasil.

FranciacortaA melhor imitação é a de Franciacorta na Lombardia italiana, ao menos se formos contar com os prêmios ganhos em degustações às cegas com a presença constante das grandes espumantes do mundo.

Digo imitação, porque usam as mesmas uvas – pinot, noir e meunieur, além da chardonnay, através do método consagrado de remouage e licor de adição, que se usa tradicionalmente em Champagne.

Os cremant e mousseux franceses, espumantes que não podem usar o nome de champanhe, são eventualmente tão bons ou melhores do que muita garrafa produzida em torno de Reims, capital da região que abarca a montagne de champagne, onde se produz tudo quanto é marca conhecida, da Cristal a Bollanger, da Cruger a Taittinger, da Veuve Clicquot a Lanson.
brindeAí está, boas festas com Guaraná, Cidre, prosecco, cremant, mousseux, champagne etc.

Coisa de fim de ano

Em resposta a um grande amigo do vinho, que se disse partidário convicto dos vinhos do novo mundo, respondi o que reproduzo:
“Legal este seu protesto contra o voto secreto que protege os enrustidos velho-mundistas como eu.
Sou pela harmonia, sou do vinho com comida, não sou do vinho para bebericar como se fosse cachaça ou uísque.
Mas sou do vinho do novo mundo cada vez mais, porque – no meu entender – ele deixou de ser tão pouco elegante e tão pouco complexo, deixou de ser engarrafado pronto para beber, deixou de ter estes atributos como categoria produtiva.penfolds-grange-information
Taste do ChileClos de ApaltaJá tem vinhos do Novo Mundo extremamente longevos até!!!
Sou um velho-mundista convicto, assim como você se declara ser novo-mundista… Mas e daí?

AntinoriOs vinhos do Novo Mundo se aproximaram dos velhos, enquanto que – a partir de gente como os Torres de Penedes e Antinore na década de 1970 – e tantos outros que os seguiram, o Velho Mundo se aproximou inexoravelmente dos do Novo.Nicholas

CoronasEm conversa recente, o senhor Thunevin, o garageiro mais bem sucedido do mundo do Bad Boyvinho, declarou que não identificava mais vinhos da california quando misturados com os de sua região, a amada Bordeaux. Não só não mais identificava, porque os californianos tinham deixado de ser extremamente amadeirados e frutados para ganhar vários pontos em elegância, como não mais privilegiava os vinhos de Bordeaux, tendo que catar em ambos os lados do Atlântico produtores que se destacavam e não regiões inteiras.

E se o homem do St Emilion mais delicioso possível diz isso, quem sou então para estabelecer uma linha maginot definitiva entre eles?

Um bom final de vinho neste final de ano, no final desta divisão entre vinhos daqui e dali!!!