Ao tentar recuperar um artigo meu de muitos anos atrás, publicado na primeira versão do site Basílico do Josimar Melo, descobri que minha memória está ficando cada vez mais rarefeita.
Não a minha memória real, a massa encefálica que funciona mal como sempre funcionou, mas o HD do meu computador, que deixou pra lá milhares de páginas, que, ao menos pela quantidade podia me render até o prêmio Nobel da literatura, como já fiz menção de reivindicar um dia, numa carta dentre outras que andei romanceando.
Numa boa garrafa, a inscrição Gamay Beaune acendeu o Sherlock Holmes que existia na minha mulher, 10 anos atrás.
Como Gamay em Beaune, perguntou, se todo bebedor de vinho da região de Bourgogne sabe, desde a mais tenra idade, que a Gamay foi banida da região mais nobre do mundo – entre Dijon e Macon – pelo apaixonado Philipe Le Hardi, um Duque que entre uma batalha e outra encontrou tempo para decretar que a plebéia Gamay era uma praga, uma peste que estragava sua uva predileta, a nobre Pinot Noir?
Mas a Sherlock Holmes, com as ferramentas da época, onde a pesquisa internética ainda não se impunha, logo cansou e foi dormir. Acordou de novo numa viagem dos sonhos, com direito a romance de casal, história, natureza, comida e vinho.
Acordou de novo nos arredores de Avallon, uma cidadezinha que fica perto de Vezelay de quem vem de Autun, em torno da floresta primária de Morvan, que ocupa um belo pedaço do que um dia foi a capital do mundo do Asterix, com seus javalis e árvores frondosas.
Aliás, aí tem um misto de história da cristandade com Cluny fornecendo o que havia de mais faustoso no século XIV e Vezelay contrapondo o que havia de mais ascético no mundo cristão – em assemblage com a história do mundo romano, recheado de batalhas de todos os tipos e cores, do mais tinto dos presuntos, invenção incontestável dos gauleses pré-romanos, ao mais dourado chardonnay, seu vinho branco regional. Neste mundo de abadias e confinamentos, uma das coisas que rolava França afora era a produção de vinho, cuja qualidade era cantada como mais uma vantagem de fazer parte desta ou daquela ordem.
Saimos de Beaune cedinho, em direção a Vezelay e já estávamos loucos – naquela altura do dia, em torno das 14,30 – para encontrar um lugar onde pudéssemos comprar uma baguete, tomar uma taça de vinho, para finalmente comer o patê de jambon persillé que tínhamos comprado em Autun, para o farnel.
O nome do local não me lembro não, faz tanto tempo que nem internet existia. Faz tanto tempo, certamente tenho escrito em algum deste cardeninhos onde anoto as coisas que não jogo fora, mas jamais lerei.
Era uma curva de estrada, com uma casa recente para os padrões franceses, ou seja, de menos de um século, localizada num aprazível campo cheio de árvores acolhedoras, com sombras para dar e vender, propriedade muito desejada para um dia de intenso calor como aquele. Suas mesas e cadeiras brancas de plástico eram mais do que suficiente.
Explicamos o que queríamos para aquela senhora de bom porte, portando avental. Ela aceitou tranquilamente, parecia que não éramos os primeiros a fazer tal proposta. Em um minuto trouxe a carta de vinho, um excelente pão, os pratos e talhares.
– Carta de vinho, eu disse, num lugar como este?
Não era uma simples carta e sim de uma extensa carta de vinho que, mesmo em se tratando do coração da Borgonha, era inimaginável para um par de brasileiros que jamais tinha visto tanta simplicidade com tantas alternativas de vinho de qualidade a preços absolutamente razoáveis. E mais – vinhos em “pichet”, jarras de 125ml, 250ml, 500ml…
Havia lá, tudo quanto era bourgogne AOC… Também pudera, estávamos a menos de 30 km da Cote D’Or, com seus Nuits de Saint Georges, Gevrey Chambertin, Chambolle, Vosnes Romanée, Voges etc. Um verdadeiro paraíso em profusão, sem que precisássemos abrir garrafas para ter um pouco de cada.
Mas além disso, chamava a atenção da presença de vários Beaujolais de vilas especiais, superiores aos genéricos, entre eles alguns Moulin a Vin, entre eles o tal Moulin a Vin de Beaune, que tinha chamado tanta a atenção da minha Sherlock.
Pedi explicações para a senhora que nos servia.
– Ah, isso é com ele, meu marido, vinho é com ele.
O tal marido era aquele sujeito pesado e aparentemente pouco afeito a conversas com turistas que não entendem nada de vinho, que comia – num canto próximo à cozinha – a sua batata cozida coberta com um molho rosé cremoso, acompanhado por uma taça de vinho branco.
Ele tinha sido chef sommelier em algum grande restaurante de Paris, devo ter anotado o nome e endereço, no meu caderninho que jamais vou reler. Veio de volta a sua terra natal e este restaurante de estrada era a sua forma de se aposentar.
Apresentado em poucas e rápidas palavras pela mulher, Iniciei pedindo desculpas pelo meu pobre domínio da sua língua e pela indelicadeza de interromper a sua refeição.
Mastigando, perguntou o que eu queria dele. Seguiu-se o diálogo abaixo:
- O que quer dizer um Gamay de Beaune, se em Beaune é proibido plantá-lo desde o século XIV?
- Não é exatamente proibido, respondeu surpreendentemente gentil. Ele pode ocupar as parcelas onde a Pinot Noir não se dá bem com a insolação, com o vento ou com o terreno. Onde ele não se mostra produtivo, entende?
- Então é assim que se explica o tal “passe-tout-grain” (significa mistura de uvas diferentes, gamay e pinot noir) borgonhês?
- Exatamente, é a mistura de vinho Pinot e Gamay, mas sempre da Borgonha, caso contrário não recebe a denominação de origem (AOC, Appellation D’Origine Controlée).
- Tem mais: existem Gamay tão bons que poderiam se chamar Borgonha, estão autorizados para isso, mas preferem ser especiais enquanto Beaujolais Villages especial a serem apenas um Borgonha genérico.
- E então, para o branco acontece o mesmo? Apesar de ser Chardonnay a uva obrigatória da região, você pode plantar Aligoté e misturar?
- Exatamente, é a versão passe-tout-grain dos vinhos brancos. Aliás é isso que estou tomando, quer conhecer?
- Cherrie – gritou ele – sirva um pichet du blanc para o casal!
Não é preciso dizer que o dia estava mais do que ganho!