A cultura do ignorante e a ignorância do culto*

pargheliaSei que nada sei, cada vez que lembro desta minha historinha, que está completando 44 primaveras.

Uma história que tem como protagonista um calabrês de 22 anos, que substituíra o pai no cultivo das uvas nos últimos cinco anos, visto que aquele era marinheiro de navios transatlânticos, ocupado em servir turistas europeus no mar com destino à Austrália, ano afora, o que não lhe permitia dstar presente na colheita, no plantio, na fermentação.

Substituía nas horas vagas e justas, pois ajudava na casa, arrumava telhado, comprava peixe, plantava horta, cuidava do galinheiro e da oliveiras, construía galpão, apenas quando não estava ocupado em estudar para o curso de engenharia que frequentava em Messina, Sicília, a mais de 120km ao sul.

900px-Calabria_StrettoMessina_tango7174

Comia-se maravilhosamente, naquela cidadezinha perdida no sul da Calábria, ainda prenhe de resquícios gregos, entre eles o nome do local – Parghelia.

tonniO peixe era o atum que passava pelo canal que se formava entre o continente e a Sicília, vendido ainda bem fresco em Tropea, cidade histórica, mimo deixado pelos espanhóis que – fugidos dos mouros no século VII – se instalaram por lá e trouxeram consigo este estilo de cidade branca caiada.

A mãe de nosso herói preparava pratos de lamber os beiços com os ovos, os frangos, as galinhas, as lulas, polvos, ouriços e atuns do lugar. A massa era feita em casa. O azeite, o vinho, as verduras e hortaliças idem.

TropeaProvocado, o jovem calabrês, sem fazer grande alarde, identificava na taça o ano do vinho servido, entre os cinco garrafões que ocupavam a parte escura do galpão, todos eles de cabeça para baixo, cada um etiquetado com um ano, o ano da safra. E identificava igualmente com a mesma segurança, os vinhos que vinham das garrafas amontoadas no canto do mesmo galpão, garrafas apenas datadas, de seis anos anteriores aos cinco citados.

damigianaNão contente, era capaz de dizer que no ano de 1966 a chuva tinha quase estragado a colheita, obrigando seu pai a começar o processo 15 dias antes da uva estar pronta, o que teria aumentado em muito a sensação tânica, e que – apesar do vinho ter seus seis anos de idade – ainda não estava pronto para beber. Ou então que a seca de dois atrás tinha dado uma produção tão pequena, mas tão concentrada, que o resultado tinha sido um vinho que as pessoas quase não acreditavam ser da uva Gagliopo, a que notabilizou o Cirò, Ciròconsiderado o grande da Calábria, conhecido porque até os anos 1980, a seleção de futebol italiana viajava sempre com ele, o que chamava a atenção, porque aos olhos do mundo, este não era o vinho mais esperado, afinal porque não o chianti, o valpoliccella, o Montepulciano d’Abruzzo, vinhos muito mais populares, ao menos para quem conhecia o vinho italiano que era exportado da Bota.

GevreyNa época, eu já era viajado, conhecia vinhos da Itália e da França, além dos chilenos Choncha Y Toro, e Undurraga, além dos brasileiros Granja União, Velho do Museu e Dal Pizzol, fora os de garrafão como o famoso Sangue de Boi. Já sabia o nome dos grandes vinhos de antão…

  • Gevrey Chambertin??? Barbaresco, Brunello, St Emilion? Nossa, como você conhece vinho! Eu aqui só conheço estes vinhos que faço, sou um total ignorante.

Tantos anos depois, ainda ressoa no meu ouvido a frase “Nossa, como você conhece vinho!.

Dou risada, porque a sua ignorância era de uma sabedoria imensa, enquanto que o meu conhecimento não podia ser valorizado quando comparado ao conhecimento dele, que sabia plantar, fermentar, tratar e julgar seus vinhos como um profissional do campo.

Evidentemente tínhamos culturas complementares, mas o que ele sabia demandava muito mais esforço do que o meu conhecimento, praticamente literário e sem terra nas unhas. Seu suor, sua sensibilidade medida por uma responsabilidade sobre o resultado da produção, era plenamente carregada de informações em todos os sentidos. A minha atenção enciclopédica, exigia uma forte observação, memória, respeito ao trabalho do outro.

Cultura em dois sentidos, um vertical, profundo, local. Outro horizontal, amplo, geral, superficial. Qual valia mais? Para mim, a dele. Para ele, a minha.

* Baseada livremente numa historia real

2 comentários em “A cultura do ignorante e a ignorância do culto*

  1. Tal de Proac abre incrições agora, em abril, pra editar e distribuir livros. Teus textos, cultura prática e pedagogia vinícola é Mouton beirando 70 anos de garrafa. Vale uma checada.

    Você anda sumida e ainda me manda texto dizendo que eu não leio mesmo. Quem tem quase toda tua obra aqui no computa fica magoada com coisa assim.

    Quanto a cultura do ignorante e a ignorância do culto é o que deu com teu querido PT. bj Date: Wed, 4 Mar 2015 14:04:20 +0000 To: duboc9@hotmail.com

    1. Ora, não tenho muita intimidade com Proac, mas gostaria mesmo de publicar em coletânea estes textos que ando praticando (evidentemente depois de passar por uma boa revisão, porque a quantidade de ofensas à língua pátria que cometo, seja por falta de atenção seja por ignorância) não deveriam sair impressas impunes, como eternização do desleixo, o que, se é um dos lados da minha personalidade, não o que gostaria de deixar para a posteridade!

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.