Look no passado – Uma panela que virou prato

Fui um colunista cronista como queria continuar sendo, ah, dá saudades. A revista Look da Editora Casa Nova, nada tinha com a revista de moda americana, mas lhe emprestava malandramente o nome.

Nela escrevi uma pá de artigos sobre cozinha que – acho – merecem revisita: lá vai um deles.

Breno Raigorodsky

Caldinho de camarão

Nosso colaborador passeia pelo Espírito
Santo e descobre a arte de
fazer panelas de barro – e um prato nela
preparado: o caldinho de camarão

Um espírito santo baixou em mim quando decidi pedir um caldinho de sururu no quiosque Mar/Verão, um dos milhares que pululam nas praias de Vitória. Pedi-o em vez do “porquinho” de sempre, o “perua” (como o chamam no ES), o Balistes vetula, um peixe de pele dura como couro e boca pequena, que muito se come frito pelas praias Brasil afora.

Dias antes, já tinha me refestelado com as internacionalmente conhecidas moqueca e torta capixabas, ambas nascidas do ventre desta tal Panela de Barro, criação dos índios da região, recriação das Paneleiras do bairro de Goiabeiras (confira o processo de confecção da panela ao final da reportagem).

Refiro-me à Panela de Barro propriamente dita, pois panelas de barro há muitas, mas nenhuma leva o nome assim, com maiúsculas e minúsculas, à moda de “Duque de Bragança”, por exemplo. Só esta atende pelo nome, só esta é irregularmente arredondada, só esta tem uma tampa mais ou menos imperfeita, é sempre escura e vem com uma base de ferro com alças como complemento.

Pois lá estava ela, só que, desta vez, em tamanho mini, uma coisinha individual, nada parecida na apresentação a qualquer outro caldo que já vi, orgulhosamente borbulhante, como se tivesse consciência de sua realeza, de sua gostosura. Lá estava ela sobre a mesa de plástico torto pela ação do sol, sob o guarda-sol desbotado, destoando de tudo, particularmente daquela estética ambiental esdrúxula.

Breno Raigorodsky

Panela de barro

Delicadeza

Um funcionário do Mar/Verão nos esguichava com água doce gelada, uma mordomia ecologicamente incorreta, por desperdiçar uma raridade cada vez mais preciosa, mas muito própria para quem, como nós e outros clientes, sofria com a temperatura acima dos 35ºC.

Fiquei esperando o caldinho do jeito que me acostumei a pedir em praias mais ao Norte, com aquela força toda de levantar defunto. Para minha surpresa, apesar da presença da mistura tomate-cebola-coentro, o tempero, a consistência e a delicadeza fizeram com que fôssemos transportados a um lugar bem longe da Bahia, terra que exportou para o mundo a grande mágica do caldinho.

Pois a versão capixaba de moqueca tem a mesma aversão ao dendê, característica do Brasil lá de cima. Mistura-se em todas o urucum ao azeite (quem disse que ele só tem cor?), faz-se uma pasta uniforme e… pronto, estamos conversados no quesito “gordura lubrificante”.

Pedi mais, já que havia 3 alternativas de caldinho no cardápio. Queria saber se só o de sururu reinaria no preparado capixaba. Escolhi o de camarão, mais em atenção às minhas companhias, que já tinham virado a cara para o sururu e, com certeza, não suportariam a presença de outro monstro maldito da culinária, o mocotó. E não é que o de camarão era tão bom ou melhor?

Na manhã seguinte, às 9 horas em ponto, lá estava eu fotografando panela e caldinho de camarão; e esperando para conversar com a responsável por tal maravilha, a faz-tudo Luciana, proprietária, balconista e cozinheira. Estava cansada porque o domingo tinha sido de lascar, ainda mais porque, além dos clientes corriqueiros, recebera uma turma de 100 pessoas, para as quais preparou 30 moquecas grandes. Num barzinho de praia, com uma cozinha de 6m², era mesmo para se cansar, coisa digna de tripulação de submarino da 2ª Guerra Mundial ou de contorcionista de circo!

Em meio àquele horizonte descontraído e informal, ela revelou um ar profissional que só se encontra nas grandes casas. Falava de limpeza, de preparo, de organização, de procura por paladares. Contava sobre treinamento de pessoal, seja na cozinha, seja no serviço. Discursava sobre o respeito ao cliente de todas as horas e de todos os bolsos para se fazer respeitar. Uma verdadeira lição de civilidade capixaba.

A arte das Panelas de Barro

Goiabeira é o nome de um bairro de Vitória que reúne a maioria das artesãs que trabalham

o barro originário do Vale de Mulembá até transformá-lo em panela. A principal

matéria-prima, o barro, é extraída nas jazidas da região. A argila, antes de ser usada, passa

por um processo de “limpeza” denominado escolha, que consiste na retirada de impurezas,

como pedras e restos de vegetais. Em seguida, devidamente envolta em plástico para

manter a umidade, fica armazenada, descansando, por algum tempo antes de ser usada.

Esta pesada tarefa, que antes era feita pelas mulheres, é atualmente realizada

predominantemente pelos homens, que o fazem amassando o barro com os pés, pisando

repetidas vezes, até torná-lo uniforme, consistente e com plasticidade adequada.

A modelagem das panelas é feita manualmente, sem o uso do torno de oleiro. A parede vai

sendo levantada, com a forma desejada, usando-se a técnica de roletes ou diretamente,

escavando a “bola” de argila, “puxando a panela”, como dizem, por meio de movimentos

com as mãos, tanto circulares como verticais, abaulando, arredondando, definindo o

formato da peça com a ajuda de rudimentares ferramentas-pedras lisas, cascas de coco,

coité (pedaço de cabaça), e objetos similares.

Certamente a característica mais marcante das panelas é a sua coloração escura. Isto é

obtido por meio da impregnação da peça com tanino, existente na árvore do

mangue-vermelho (Rhizophora mangle). Usa-se sua casca que é retirada do tronco

batendo-se fortemente com um porrete de madeira. As lascas assim obtidas são picadas e colocadas de molho em água doce, para curtir por, no mínimo, 3 dias.

Salientamos que esta prática na região não é predatória, pois há uma consciência de

preservação muito clara por parte dos “casqueiros”. Neste sentido, eles só retiram a casca

de um dos lados do tronco, em pouca quantidade, procedimento que não prejudica a árvore

nem o manguezal.

A aplicação do tanino nas panelas é feita batendo-se, vigorosamente, com uma vassourinha embebida com o mesmo, na peça ainda quente, imediatamente após ter saído do fogo. Este processo de impregnação é conhecido como açoite. Como resultado, o tanino penetra nos

poros da cerâmica, cobrindo fissuras e tornando-a impermeável, servindo também para

impedir a proliferação de fungos, que, com o correr do tempo, esfarelam o barro.
(Fonte: Associação das Paneleiras de Goiabeiras)

 

Vamos viver sem fígado de ganso?

São Paulo acaba de entrar para o crescente clube dos defensores do fígado dos gansos e patos, como já acontece na Argentina, Dinamarca, Israel, Polônia, Holanda, Reino Unido e parte dos EUA. Nossos vereadores decidiram que é crime a engorda forçada de aves com intuito gastronômico, tornando vil a prática do fígado gordo, conhecido pelo seu nome francês foie gras.

Trata-se de livrar o animal de dor desnaturada, nada contra o delicioso resultado, um paté de fígado extremamente delicado, melhor do que qualquer outro, de ave ou não. Muito antes desta tomada de consciência humanitária contra o sofrimento do animal generalizada, a prática gerava polêmica entre os judeus, pois a proibição da dor desnecessária é uma das regras do rabinato para definir se uma comida é apta ou não (kasher).

A história documenta a técnica de engorda muito séculos antes da construção do primeiro Templo de Jerusalém, como atesta, entre outros, um baixo relevo encontrado na necrópole de Saqqara, na tumba de um alto funcionário de um Faraó*. A imagem mostra claramente escravos forçando um ganso a engolir comida.

Ou seja, foram os egípcios que inventaram a coisa, mas quem sempre pagou o pato foram os judeus!

Sim, judeus e fígado de ganso engordado por força estão juntos na literatura gastronômica desde 1570, data da publicação do livro Opera do cozinheiro do Papa Pio V –  “O fígado dos gansos domésticos é inchado pelos judeus a tamanhos e pesos extremos, chegando a mais de 1 kg”*. Onze anos depois e a descoberta do cozinheiro do Papa já era confirmada pelo livro de receitas Kochbuch escrito por um tal de Max Rumpolt de Mogúncia, que se dizia maravilhado por uma técnica judaica capaz de produzir fígados pesando até 1,5 kg!”*

De fato, sabemos o quanto os judeus europeus eram especialistas em criar gansos e tirar dele o melhor deles para o uso culinário. Os chulents*,* deliciosos pratos de lento cozimento feitos de um dia para o outro, colocados quase sempre ao fogo antes do anoitecer da sexta-feira para se comer no sábado sagrado, são tantas vezes preparados a partir das ótimas coxas desta ave. Sabemos inclusive que a grande maioria dos pratos que comemos com frango, como os rossale e os gargale são adaptações cuja origem é ganso e não frango.

Mas não se desespere, amante inveterado da grande iguaria, a proibição tem gerado muitas pesquisas alternativas para se atingir sabor similar sem a dita crueldade, pois a gordura de ganso pode impregnar um fígado, dissolver-se no órgão e trazer ao produto, um gosto similar, se bem que de textura um tanto diferente. E de fato criminosa é a última fase da engorda, apenas o arremate do processo. Antes dele, o ganso é naturalmente engordado com aveias e nozes selecionados o que já garante um aumento de peso considerável, que supera os 50%.

Ou seja, a reciclagem do produto está para ocorrer e todos estaremos livres para comer a iguaria sem qualquer sentimento do culpa, além daquele que temos que conviver quando somos carnívoros e nos alimentamos dos rebanhos que a sociedade acabou criando em torno de si.

  • fonte – Wikipedia
  • chulent não é nome de prato mas a técnica de cozinhar lentamente, apesar de estar associado a apenas uma iguaria. Pesquisas já apresentadas por este articulista nesta mesma revista, mostraram que só na cozinha polonesa havia ao menos 300 receitas chulent.