Falando sobre a Tenuta Capezzana
Se eu fosse crente de energias além daquelas que se encontram na natureza, diria que graças aos céus há vinhos que quebram a mesmice, não tentam imitar o que não são, fazem ocupar o lugar que lhes pertencem na diversidade.
E mesmo quando entram na onda de olhar para os lados e fazer coisas fora do comum, apenas interpretam o que os outros são à sua maneira, como é o caso do Capezzana 804, um Syrah que a vinícola Capezzano de Carmignano criou no meio da Toscana para comemorar 1200 anos de existência da vinícola. Ungiu-se um vinho com uma uva estranha que se familiarizou, se submeteu ao terroir local, tornou-se compadre. Nada justifica um vinho custar US265$50, a não ser uma relação de oferta e demanda que empurre os preços para cima sem parar.
Mas este é um vinho feito para tão poucas garrafas, para uma ocasião um tanto quanto particular (quem tem mais de 12 séculos para comemorar que atire a primeira pedra), apenas 300 caixas produzidas para serem distribuídas mundo afora.
Mas além da indiscutível qualidade do vinho, não é para ele que jogo confetes, apesar de entender a sua mercadológica necessidade de ser e estar. Interessa muito mais o que se faz de seu, de cotidiano nesta Tenuta di Capezzana, de Carmignano, local aprazível que um dia foi o parque de lazer dos poderosos da Toscana, Medici inclusos.
Carmignano é Carmignano, e nenhum vinho que provei deixou de se mostrar solidário com seu jeito particular de ser, a não ser – em parte – um internacionalíssimo chardonnay de entrada, um vinho que entraria numa degustação de Borgonha sem se deixar perceber. Como disse, brincando, Leone Contini Bonacossi, o representante da família que possui a Capezzana desde 1920 “nós fazemos do nosso modo, a ponto de qualquer uva que plantamos ganhar nossa identidade… Até as pessoas que estão conosco, não importa de onde vieram, tornam-se como nós”
Carmignano foi Carmignano DOC a partir de 1716, por obra do Grã-Duque da Toscana Cosimo III, colocando em dúvida aquilo que a gente ensina na escola, que o primeiro terroir a ser demarcado é o do Porto, de 1757, obra do Marques de Pombal. Ocorre que Carmignano ficou esquecido por algum tempo, tanto que na onda dos primeiros DOCs italianos de 1930, não foi lembrado, submeteu-se a um DOC secundário, o Chianti Montalbano. Recuperou sua posição independente apenas na leva dos DOCs de 1975, graças – em boa parte – à boa influência de um dos mais respeitados homens do vinho de todos os tempos – Luigi Veronelli, decano de movimentos tão importantes para o vinho e para a comida, sendo voz ativa a favor dos pequenos produtores de toda Itália, influenciando fortemente a Arcigola e depois a Slow Food que tanto ajudou a construir.
Em tom de troça, escrevi um artigo neste espaço sobre os infinitos DOCs e DOCGs da Itália de hoje. Alinhavei aquela quantidade tremenda, algo em torno dos 200 somente nesta microbela região do centro da Itália. Tem DOC pra todo lado – Morelino di Scansano, Bolgheri, Senesi, Val d’Orcia, Montepulciano, Montalcino, Chianti Classico etc.
Escrevi também – igualmente em tom de troça – que se com a mão direita os produtores da região pedem benção às suas denominações, com a esquerda querem se livrar delas, vão às vinhas francesas, mandando às favas a tipicidade que lhes concede os vinhos com denominação de origem. Assim é que – numa visita recente à região – o vinho mais prestigiado de cada degustação comumente era um Syrah, um corte bordalês, uma coisa assim. Pois ao contrário dos franceses mais prestigiados, eles querem mostrar que sua terra é o que há de melhor para qualquer uva. Ou seja, vinho toscano é sinônimo de vinho bom, seja ele de acordo ou não.
Quase escrevi que honrosas exceções há. Pensei nos brunellos… Aí me lembrei do escândalo dos brunellos falsificados, excelentes falsificações, aliás, que foram descobertos não porque fossem ruins, mas porque eram amistosos demais para serem sisudos como um Brunello costuma ser. Ou seja, mesmo que por baixo do pano, os brunellos também andaram saindo da linha, mesmo depois de terem criado uma espécie de denominação local que serve maravilhosamente para escapar do rigor – a Sant’Antimo, onde pode-se brincar mais a vontade com as uvas plantadas na região, mesmo que não sejam autóctones.
No caso de Carmignano, no entanto, Cabernet Sauvignon não é questão de moda, nem foi inventado a partir do sucesso dos vinhos feitos em torno de Bolgheri, muitos séculos antes dos Antinori se darem conta da sua expressão toscana e, portanto, muito anos antes da existência dos ditos Supertoscanos. Explica-se pelo relacionamento familiar que Carmignano teve com os Bourbon desde o século XVI. É certo que Catarina di Medici, mulher do rei da França Henrique II, trouxe consigo as primeiras mudas desta uva que, não por acaso, localmente ganhou o nome de “Francesa”.
Vai dai, que misturar cabernet sauvignon com Sangiovese é tarefa muito anterior a dos outros vinicultores que hoje habitam a Toscana. Para a Tenuta di Capezzana isso é o que sempre fizeram, e continuam a fazer com mais ou menos nobreza, como mostram seus vinhos Mona Nera, Barco Reale, Villa di Capezzana, Trefiano e Ghiaie della furba, este último nomeadamente um vinho feito para concorrer com os supertoscanos que servem como pano de fundo desta reflexão.
Sim, custa US93$50 mas por este preço tem um concorrente de peso, que me faz bem mais a cabeça, o Trefiano. Talvez porque ele seja uma dessas expressões máximas do terroir e da uva desta região central da Bota.
O Trefiano é produzido desde 1979, fruto de solo xistoso/argiloso, de plantas com idade média de 16 anos. Em 2010 foram produzidas exatas 12.110 garrafas, que passaram por 18 meses de madeira francesa, com a fermentação malolática completa também na mesma madeira. Passou ao menos dois anos em garrafa antes da comercialização. O resultado do processo cuidadoso foi sentido em boca, elegante no nariz, com notas sutis de fruta e especiaria. Na boca é todo tipicidade, complexidade, persistência e elegância. É o que eu espero de um grande vinho.
Sem fazer alarde, mostrando que é uma verdadeira alternativa a todos os grandes, famosos e badalados vinhos desta Toscana de beleza e tradição fantásticas, Trefiano não fica devendo a ninguém.