Vinitaly, o caldeirão.

Escrevi uma vez que a Itália produzia o pior e o melhor do vinho. Frascati, Lambrusco, Bardolino, Sangue di Giuda, são os contrapontos infernais dos divinos Barolo, DievoleBarbaresco, Brunello, Chianti Classico Riserva, Amarone,  Bolgheri, Picolit…
Os divinos, na verdade, são tantos, quase tantos quanto os da vizinha França. Sem tanta fama, seguem nobres os Nobile di Montepulciano, os Morelino di Scansano, os Taurasi, os grandes sicilianos baseados nos nos Nerello di Mascalesi e nos Nero D’Avola, como os excelente Mille e Una Notte do produtor Donnafugata.milleeunanotte

Sem contar os vinhos surpreendentes da Umbria como os de Falesco, da Puglia com Primitivo di Mandúria e Salento, do Piemonte com outros nebbiolo como Gheme e Gatinara, da Toscana como os supertoscanos, Santantimo, Val d’Órcia, os brancos do Veneto e do Lago di Garda, os Alto Adige etc.

Sem considerar que grandes produtores regionais, como Antinori e Gaja ultrapassam fronteiras tradicionais e investem pesado em outras regiões, levando tecnologia e inovação para regiões que não estavam entre os melhores, seja em uva, seja em vinificação. Puglia, Sicília, Vêneto sendo invadidos por grandes produtores da Toscana e do Piemonte. Uvas consagradas regionalmente sendo usadas em outras regiões, colocando em cheque os princípios das Denominações de Origem italianas, que exigem o uso prioritário de uvas locais.

mapaA Peninsula Itálica está entre os maiores produtores, os maiores exportadores e os maiores consumidores (33l/ano em 2015, 20,5 milhões de hl – Fonte http://www.inumeridelvino.it/2016/10/i-consumi-di-vino-totali-e-pro-capite-2015-aggiornamento-oiv.html#more-19018). Contraponto aos vinhos de quantidades enormes, vinhos de altíssima excelência, que rivalizam em qualidade com os melhores do mundo.

 

IMG_0841Na Vinitaly esta reflexão se confirma. Boxes e mais boxes com vinhos praticamente iguais, puro commodity, vinhos cuja maior diferença entre si está no rótulo de identificação, porque por dentro são iguais na falta de cuidado, no exagero da extração, na vontade de ganhar de modo abusivo. Vinhos sem personalidade própria, à procura de um lugar na gôndola, nada mais.

Isso não é mérito ou demérito exclusivo dos vinhos italianos, visto que todos os produtos bem sucedidos criam um potencial movimento imitativo entre vizinhos, que usam as mesmas uvas ou têm as mesmas características de vinificação.

IMG_1086A Vinitaly reúne novidades em torno do vinho. Maquinaria de acabamento, layout de embalagem e novidades nas degustações, aproveitando a paisagem e a historia da cidade de Verona, se multiplicam. IMG_1079

E eu querendo novidade dentro da garrafa, no vinho propriamente dito, coisas que conheço pouco,  como os picolitTeroldego de Verona, uma da regiões de vinhos com esta uva de nariz frutado e florido, particularmente longevos; como os delicados Nerello di Mascalese, ou os poderosos Taurasi, e Bolgheri como Tua Rita, além de vinhos extraordinários e raros como o Picolit dei Colli Orientali del Friuli di Roca Bernarda, vinho de sobremesa com produção de apenas 500 hectolitro/ano, visto unicamente nas adegas dos príncipes e papas.

É verdade que o anseio pelo desconhecido não leva obrigatoriamente a grandes achados, porque – via de regra – cumprirmos mais ou menos os mesmos caminhos que a historia do consumo determinou, onde a regência do consumidor se faz presente, com ou sem a intervenção dos entendidos.

Ou seja, dando – em boa parte – razão à lógica do mercado, quase sempre são os melhores que se consagraram e isso define os vinhos cujo vôo permite frequentar os grandes centros ou se restringir a um consumidor local, que paga por um vinho simples e não o troca por outro mais voltado para o mercado geral, a não ser em alguma ocasião comemorativa.

É o misto de sabor local e preço – a incrível resiliência de vinhos feitos de um jeito ultrapassado, sem aporte de novas tecnologias, sem investimentos importantes em higienização e práticas mais saudáveis no campo. É esta mistura que explica, não apenas os Lambrusco, Frascatti e Bardolinos da vida, como também os vinhos de uva americana que se consome por aqui.

Mi gusto non é su gusto! Vinhos de baixa qualidade e baixo preço abundam no mercado internacional, local e regional.

E isso se vê claramente numa feira como a Vinitaly.

Mas se o mercado parece dar a palavra definitiva e vaticina quem vai para o trono ou não, permite-se acontecimentos cada vez mais vistos – uvas sendo aproveitadas de modo diferente ao que o mercado se acostumou a vê-las. Dois exemplos recentes?

  1. O Barbera que sempre foi um vinho abre-estrada para os nobres do Piemonte, tem se mostrado cada vez mais concentrado, consistente, complexo e outros atributos que não costumava ter, quando, até poucos anos, não tinha sequer a chance de passar por madeira de qualidade.
  2. O Zifandel que, como o Primitivo, passou décadas como vinho de mesa e agora se mostra com a concentração de alguns dos vinhos de maior prestigio e preço do mercado.

Mesmo tendo perdido a chance de me aproximar dos vinhos que conheço pouco e que queria ter maior intimidade como os Teroldego, os Taurasi e os Nerellos de Mascalesi, não posso dizer que não aproveitei. Vamos às novidades mais marcantes:

VALTELLINA – Já não era nada tão novo assim. Promovi uma Sforzatto degustação às cegas, em 2014. Pus na mesa Gheme, Gatinara, Barolo, Barbaresco, Langhe Nebbiolo e Sforzatto. Ou seja, um pot-pourri de nebbiolo.

Naquele meio, o Sforzatto escolhido não se saiu tão bem, a turma era muito forte e os confrades não morriam de amores por vinhos tão alcoólicos e com ataque doce, como é este lombardo quase austríaco, que lembra o jeitão de um Amarone, por ter uma vinificação semelhante. Mas um ano depois, pude abrir o leque de alternativas da região e minha referência tornou-se a Scercé, um vinho encantador, particularmente nas alternativas menos alcóolicas.

O consórcio dos produtores da região (http://www.vinidivaltellina.it), que conta com mais de 40 produtores, apresentou-se num coletivo que permitiu este degustador incauto a conhecer esta face da nebbiolo mais desconhecida: a dos vinhos simples, mais do que os Langhe Nebbiolo piemonteses. Mas também uma deliciosa mostra de vinhos com alguma passagem por madeira, corretos, mais firmes que os Gamay do sul da Borgonha, do mesmo estilo, sabor, cor e acidez de muitos Bourgogne básicos.

InfernoGostei particularmente de um produtor do grupo, Mamete Prevostini. Seu Inferno não fica nada a dever aos bons do Piemonte, além dos Barolo e Barbaresco. Com seus 13,5% de álcool, nozes e fruta em compota, perfume de bosque muito presente – apesar dos 12 meses que passa em barril de carvalho de muitos usos e os 8 meses de garrafa obrigatórios – faz boa figura, mostrando que a uva encontra-se a vontade, mesmo a algumas centenas de km de distância do Langhe piemontês de origem. Outros vinhos do mesmo produtor, como o Grumello, impressionaram muito bem.

OLTREPÓ PAVESE – Butafuoco é o nome do melhor, quem sabe o único vinho que merece real destaque na região. Tive oportunidade de conhecer os pinot nero, um tinto e um rosé, que fazem por lá. Meia boca o tinto, muito bom o rosé.IMG_1070 O Butafuoco dell’Oltrepò Pavese é DOC mas deveria ter um DOCG, para separar o joio do trigo, porque sob este título experimentei um vinho que não passa de mediano e um outro excelente. Butafuoco é sempre feito de Croatina, Barbera, Uva Rara e Ughetta di Canneto, É muita confusão sob a mesma titularidade pois as versões tiram a força do vinho de excelência e confunde quem não conhece bem. Descobre-se que o Butafuoco pode ser vinho “fermo” (seco, disponível inclusive com grande envelhecimento em madeira), “vivace” e “frizzante” o que desmoraliza o esforço de quem está atrás de fazer um grande vinho para rivalizar, no mínimo com os segundos vinhos carismáticos das regiões vizinhas, os Roero, os Rosso di Montalcino etc.IMG_0991

CALABRIA – Outra região que não conhecia nada e mostrou potencial crescente foi a Calábria, quem diria. O mundo conhecia o Cirò, o vinho oficial da seleção do calcio italiano, l’Azzurra, durante muitos anos. Feito com a cepa Gagliopo, em mais de 90%, o Cirò renasce das cinzas. Assim como ele, me encantei com alguns produtos da vinícola LentoVinitaly Lento, particularmente com este Lamezia Riserva. surpreendente revelação, um vinho de 14% de álcool, cuja uva estrela é a autoctone Magliocco, que divide os louros com a Grecco Nero e com uma versão local da Nerello, que tanto brilha na região do Etna siciliano. Depois de passar dois anos em guarda de aço, estagia em madeira francesa por um ano e no mínimo seis meses em garrafa antes de ir para o comércio. Grata surpresa saber que a vinícola fica tão perto de Parghelia (72km), onde passei 20 dias colhendo ouriço e patelle* nas rochas, aprendendo a pescar polvo e comendo pratos à base de atum que passa em cardumes gigantescos por aquelas águas do Tirreno. Peixes tão grandes que uma vez fui comprar na vizinha Tropea uma posta, que foi cortada com serra elétrica e pesava 6 kg!*

 A verdade é que nunca esperei encontrar vinhos calabreses com aquela qualidade. Equidistante dos mares Adriático e Tirreno,  Lento foi uma das mais gratas surpresas que tive na Feira. Porque além do Lamezia, outros bons vinhos me foram oferecidos, particularmente o Grecco, branco de alta qualidade, surpreendente estrutura.

MARCHE – Totalmente inesperado, um vinho produzido pela Piersanti este Bachero mostra uma concentração inesperada para os Verdichio, vinhos comumente jovens, recentes. Vinitally BacheroIMG_1029 (1)Em troca de maior acidez, este Verdíchio dei Castelli di Jesu Classico com mais de 13% de álcool, não fica nada a dever a outros tantos grandes vinhos brancos da Itália. Piersanti está a espera de um importador para o nosso país.

TOSCANA – Depois do grande sucesso dos Brunello di Montalcino e dos Supertoscanos, apenas a Denominação Morelino di Scansano chamou a atenção da crítica para os vinhos desta região central da Itália, pioneira nos vinhos reconhecidos no mundo inteiro a partir de seus chianti, identificados pelo formato em ânfora de suas garrafas cobertas por uma malha de palha.

IMG_1037Ocorre que na pressa de achar novidades, uma sub-região – vizinha de vale à Montalcino – ficou meio esquecida pelo caminho – Montepulciano (não confundir com a uva abruzzêsa).

Gatavechi faz vinhos tradicionais Vino Nobile di Montepulciano e Rossi di Montepulciano com uma qualidade que não deve nada à grande maioria dos Brunello. Sua linha mais moderna, menos típica, passa 18 meses em barricas de 225litros de madeira francesa, dando-lhe uma elegância que seus tradicionais produtos que descansam em grandes botes de madeira da Eslovenia não têm. Beleza de vinho!

SARDENHA – Temos pelo Brasil algumas garrafas desta mítica ilha, tão disputada pelos turistas, tão conhecida pelas suas praias paradisíacas e muito menos conhecida que a Sicilia. Mas nenhum dos seus vinhos me impressionou mais do que este Canonau, de baixa produção (65 q.li / ha.). Canonau, sabe-se hoje em dia, é a Garnacha espanhola, que andou migrando para o lado da França, ganhando o sotaque de Grenache por aqueles lados. Só que na Sardenha ela está há mais de 3200 anos, o que permite discutir se é autóctone viajada para a Espanha ou o contrário.

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Como em outros países, foi meio que mal tratada, visto como uva secundária, até que ganhou prestígio e bom tratamento. No caso Pedres, ela passa por 6 meses em madeira de primeiro uso e com isso se dá muito bem!

LAGO DI GARDA – já falei de Cà Maiol, um produtor que admiro muito, particularmente com os vinhos TOP, como o excelente Lugana Fabio Contato.

Aqui, quero chamar atenção para um pequeno produtor, que se vira com um quintal que desemboca no lago, plantando lá as uvas típicas da região. O contra-rótulo de seu Morenico é auto explicativo: É vinho de muita elegância, IMG_0995sugerindo que a região não produz apenas vinhos de qualidade com seus Lugana Trebianni, mas também o Gropello sabe bem se comportar, servindo de base para produtos de alta qualidade. Uma particularidade: o serviço foi completo com uma deliciosa porção de Colonata defumada, muito agradável em boca. Estava difícil levantar-se da mesa, tão bem caiu a harmonização + o cansaço físico e mental que só uma feira de vinho pode trazer. Com estrutura semelhante ao Morenico, pude degustar o grande vinho da casa, muito mais pretensioso, com metade das uvas secas por dois meses e com 15 meses de guarda em Allier de primeiro uso, o Don Lisander. Belo vinho, mais de reflexão… Por isso, fiquei no Morenico, numa boa!

Para finalizar, tendo deixado de lado muita coisa para contar – como os Primitivo de Salento que andei procurando, os grandes vinhos Roero e espumantes do Piemonte com uva autoctone Erbaluce, os Malvirà, o Fontanina di Valpolicella, o familiar Villa Crine – o melhor da comida regional: não é possível ir a Itália e não se aproveitar para beber do caldo cultural e da paisagem estonteante, onde cada centímetro foi conquistado, reconquistado para depois ser novamente conquistado. A primeira foto da esquerda uma espécie de cabaça de mussarela típica de Molise. Ao lado, uma jóia inigualável de Pavia – o salame de ganso!!!! Finalmente, em Desenzano di Garda, num dos mais lindos restaurantes rurais que já vi, o mais típico e delicioso prato deste nordeste italiano, o assado equino com pinoles e radichio :

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