Os Piccini estão por ai

vinhos degustados a convite da Vinci

Num passeio pela Piccini, ciceroneado pela Deborah Provenzani, Export Manager da vinícola, passei pelo Vernaccia di San Giminiano, pela linha Memoro branco, rosado, tinto e Vintage 2012; passeamos pelo Chianti Reserva, pelos dois Montalcino, pelo Mario Primo.
Meus destaques maiores foram para
– o rosado, cuja proposta é aquela que mais me atrai, vinho sem vontade de nadar em piscina ou praia. Porque sua praia é a mesa de comida, algo como um Cacciuco.
– O Vernaccia que mostra o potencial de exportação que o vinho tem, podendo concorrer em acidez e frescor, em aroma e fim de boca com qualquer neozelandês, com qualquer Pinot Grigio que tenha proposta similar.
– O Chianti Riserva, que quase não é marcado pelos característicos tons do terciário, mas que nos dá um passeio elegante pela tipicidade dos galos negros (Galli Neri).
– O Rosso di Montalcino, apesar de não valer o dobro do preço do Chianti Riserva, o vinho é o que se espera dele: concentração, estrutura, complexidade e taninos que pedem oxigênio para respirar um tempinho. Belo vinho!
Pena que não pudemos passear pela baia do Governo Toscano, uma joia da Piccini, com seu Sangiovese trasvestido de Corvina, passando por processo de secagem (passito) invernal, como se fosse um Amarone fora de lugar…

Esta é uma historia que precisa ser mais ou menos bem contada, porque lida com um preconceito enraizado na mente da Inteligentia dos que lidam com gastronomia no Brasil.

O vinho se consolida como produto para o brasileiro, mas o vinho feito por aqui ainda encontra certas resistências.

De fato, duas pequenas coisas importunam a historia do vinho brasileiro: a qualidade e o preço…só essas duas coisinhas!!!

Também pudera, esta historia nasceu pelas mãos de gente que produziu para o seu próprio consumo, imigrantes que mal haviam se instalado vindos principalmente do vêneto italiano. Faziam vinho sem conhecimento acadêmico, faziam porque era esta a cultura, tentavam reproduzir aqui o que sempre fizeram em suas terras de origem, em quase 100% dos casos.

Nestes 100 anos de existência, no mais das vezes concentrado no Rio Grande do Sul, na região que vai de Flores da Cunha até Bento Gonçalves – com exceções como São Roque em SP e os brancos Goethe próximo a Florianópolis – o vinho era feito principalmente de uva de mesa, mais apropriada para o consumo in natura ou para suco. Vinhos vendidos em garrafões de 5 litros, muitas vezes adocicados com açúcar de cana.

Quando não, feitos de uvas viníferas europeias, eram irregulares demais – um ano bom por conta da seca em época de colheita, cinco anos ruins por conta do alto índice pluviométrico que aguava as frutas já maduras… outro ano mais ou menos, seguido de mais cinco ruins…Assim não havia incentivo à boa produção, por mais que os anos bons tenham produzido vinhos que entraram para a historia, vinhos como comprovam o Velho do Museu, Dal Pizzol, Chateau Lacave, Granja União e outros que puderam mostrar como o vinho da região tinha lá seu potencial.
Potencial este, por sinal, detectado pela Universidade da Califórnia Davis, a UCDavis, a principal escola de agronomia dos EUA, a única escola pública que se mantém entre as 10 melhores do mundo, que em 1970 sugeriu a produção de uvas para vinho no paralelo 41, na Campanha gaúcha, resultando na implantação da gigante americana Almaden, assim incentivando a vinda de outras multinacionais do vinho como a Moet Chandon francesa e a Martini&Rossi italiana, a primeira num projeto grandioso que envolveu Mendoza argentina, a Califórnia americana e Vale dos Vinhedos gaúcha.

A italiana veio com propósitos firmes de fazer no Brasil um polo de produção a partir da Moscatel a partir do método Asti de espumantes, que interrompe a fermentação da uva por choque térmico quando ela atinge os 7% de álcool, restando grande residual de açúcar no vinho, agradando a quem gosta de bebida mais doce.

1990

Passados os anos, o amadurecimento desta promissora agroindústria e procura de novos consumidores começa de fato em torno dos anos 1990, com investimentos em nova tecnologia, desde a compra de mudas escolhidas de uvas importantes, até a implantação de técnicas que privilegiam a qualidade e não a quantidade, seguindo os princípios da década anterior que vinham transformando radicalmente a produção europeia e do Novo Mundo, tendo a liderança da Austrália e dos EUA neste processo de renovação.

No Chile e na Argentina, a presença de técnicos modernos como o famoso Michel Rolland foi decisiva para o novo vinho do Novo Mundo.

No Brasil, os seguidores foram se fazendo notar, com gente como Mario Geisse, Idalêncio Angheben – nosso decano da enologia – e Adolfo Lona prestando consultoria para várias empresas que queriam migrar para este novo mercado, que era de um vinho muito diferente daquele que se produzia e se consumia por aqui até então.

2010

Dando um salto de mais de 20 anos nesta historinha e chegando aos dias de hoje, tanta coisa mudou, a começar pelas cidades, que mudaram muito, perderam a característica primeira das cidades reserva de mercado de trabalho, tornaram-se megacentros do setor de serviços, causando grandes transformações do ponto de vista dos costumes.

Aquele vinho de garrafão servido em copo americano que os diaristas da indústria tomavam de pé nos bares enquanto esperavam a marmita esquentar em torno das fábricas de Sto Amaro e Lapa não existem mais.

A cidade foi recheada de gente que tem atividade de escritório, as contradições se sofisticaram, é gente que está ligada em questões que passam ao largo das questões do enfrentamento direto entre o capital e o trabalho. São Paulo, por exemplo, criou uma indústria de turismo empresarial e diversão que movimenta um número de mais de 15 milhões de pessoas/ano, em boa parte estrangeiros, em boa parte consumidores de vinho…

Muita coisa mudou neste comércio. Hoje em dia, os supermercados têm um equipamento que garante a conservação, ao contrário do que acontecia até 10 anos atrás, quando o vinho recebia o mesmo tratamento dos enlatados.
As gôndolas voltadas para este produto cresceram e se multiplicaram.

As importações dos vinhos – ao contrário do que muito pensam – impulsionou o mercado em geral, levando o vinho brasileiro de roldão para um ponto superior, pois mesmo perdendo fatia percentual do bolo anterior, ganhou boa musculatura em números absolutos.

Gente que amava vinho, mas não tinha nada a ver com este departamento da economia – a não ser do ponto de vista do consumo – decidiu investir dinheiro e competir. Foi o caso dos donos da Cecrisa/Porbelo que investiram um bom dinheiro bom vindo da cerâmica, para construir a ótima vinícola Vila Francioni em São Joaquim, abrindo espaço para a Pericó, pertencente ao grupo Malwee de tecelagem…O mesmo para o grupo Randon que se uniu à Miolo para seus vinhos RAR. O mesmo para o locutor Galvão Bueno, que fez caminho similar e montou a sua Bueno. O mesmo se pode dizer da Routhier&Darricarrere ligada à maior empresa de cítricos da América Latina, a Citrosul… O mesmo para a gigante em genética animal, Guatambu, que resolveu fazer vinho também. O mesmo para a Luiz Argenta, que comprou a terra onde um dia foi a pioneira Granja União em Flores da Cunha, cujo acumulação do capital veio de uma poderosa rede de postos de gasolina. O mesmo para a mineradora da família Guaspari, que agora produz um dos vinhos mais bem avaliados do mercado.
Dinheiro bom em negócio ruim? Onde já se viu empresários bem-sucedidos jogar dinheiro fora?

Na outra ponta, pequenas vinícolas investiram em treinamento, maquinaria e cultura, tornando a produção algo muito mais sério.

Os velhos players evoluíram, passaram a produzir com muito mais qualidade e tecnologia. Cito só de passagem a Valduga, a Miolo, a Perini, a Aurora, a Salton, quase todas constituintes de um capital primitivo muito aquém do que fazem hoje. A Aurora, a maior do Brasil, especializada nos vinhos de uva americana, faz – desde a virada do milênio um Cabernet Sauvignon, o MIllesime, de bela estrutura e bom preço. Em Pinto Bandeira, faz dos melhores chardonnays e pinot noir do país. A Miolo tem a melhor variedade de produtos e presença em quase todas as regiões produtivas do país.

A Salton, que conseguiu sair do buraco graças à força do Angelo Salton e seu conhaque (?) Presidente, faz, além dos premiados Desejo e Talento, alguns espumantes que não param de surpreender, como o Aziz que acaba de ganhar uma degustação as cegas que liderei, tendo presença de pesos pesados como a champagne da rainha da Inglaterra Lanson e um Franciacorta, além de um Geisse e do Vertigo da Pizzato.

A Perini que criou um braço de uvas viníferas para exportação, faz vinhos para o mercado norte-americano de boa aceitação e, com ótima consultoria enológica tem vencido provas importantes com seus tintos, brancos e espumantes.

Sem contar com empresas que passaram a ter seus próprios rótulos, incentivados pelo horizonte otimista que se fez, como é o caso da Vallontano, da Anghebem, da Lidio Carraro, da Pizzato, do Maximo Boschi e tantas outras que merecem citação.
É que o preço e a qualidade dos produtos que se fazia aqui foram se mostrando competitivos, e isto já estava mais do que provado em 2013, quando tive a oportunidade de liderar uma degustação de vinhos brasileiros, argentinos e chilenos com especialistas que vieram de toda parte do mundo para garantir a idoneidade da prova. Nela os nossos produtos passaram nas provas de preço e qualidade mostrando que são tão bons ou as vezes melhores que vinhos altamente conceituados, como, só para dar exemplos, Clos de Los Siete, Errazuris e Achaval Ferrer.

As desvantagens comerciais vis-a-vis os produtores vizinhos, beneficiados pelos acordos do Mercosul; depois de tantas provas ganhas mundo afora, provas que envolvem milhares de produtores do mundo inteiro com a presença dos mais idôneos e experientes degustadores; no momento em que os acordos entre a Europa e o Mercosul estão para sair do papel e se tornarem realidades.

Neste momento, considerando tudo dito, a consagração do vinho brasileiro está vindo a cavalo. Nas provas importantes da Bélgica e da Inglaterra, vinhos do Rio Grande do Sul, de Sta Catarina, de São Paulo, em várias categorias, estão se mostrando excelentes, muitas vezes levando os maiores prêmios.

Hoje em dia, os vinhos brasileiros já aparecem no anuário Descorchados do Patricio Tapia, que a 21 anos reúne o melhor dos vinhos da América Latina. Ocupa 80 das 1200 páginas do guia, o que não é pouco, se considerarmos que não havia massa crítica para participar até poucos anos atrás.
Guatambu, Guaspari, Valduga, Monte Paschoal, Geisse, Maximo Boschi, Peterlongo, Domno, Estrelas do Brasil, Miolo, Luiz Argenta, Pizzato, Via Piana, Serena, Perini, Leoni de Venezia, Quinta da Figueira e tantos outros ganharam destaque, com notas sempre acima dos 90 pontos em 100 possíveis.

Outros se destacaram na Decanter World Wine Award 2018. A Decanter é a mais prestigiada revista do mundo do vinho. Sua seleção reúne 275 jurados, que julgam quase 17 mil rótulos vindos de 61 países produtores. Os maiores prêmios foram divididos entre os franceses e italianos, 12 e 5 respectivamente, entre os 50 melhores do mundo.

O Brasil se apresentou bem, ganhando várias medalhas de ouro com Peterlongo, Valduga, Guaspari, Salton, Domno, Miolo e Perini.

Os vinhos brasileiros estão na Ásia e nos EUA, na Polônia e na Alemanha. Estão obviamente mais presentes em países com tradição de importação do que de produção, onde os habitantes estão acostumados a tomar os vinhos que produz.

Estão atingindo boas marcas, mesmo quando a produção não é de grande escala, mas a presença dos maiores entre os mais premiados é também significativa do investimento em modernização e diversificação que se está vivendo.

De uma produção folclórica e irregular, com um consumidor local e de baixa renda, o vinho brasileiro tornou-se competitivo em praticamente todas as frentes. Superou barreiras tecnológicas, climáticas, antropológicas, regionais. É produzido em cinco regiões diferentes, diversificando seu perfil, possibilitando grande gama de alternativas em uvas e vinificação.

QUANTO ÀS INDICAÇÕES DE ORIGEM – uma tomada de posição sobre DOC e outras regras

E assim as regiões produtoras vão se especializando em cepas. Com os prêmios ao Tannat Guatambu, que reforçam a vocação da região, detectada desde o Vinhas Velhas Almaden; com a vocação para Syrah entre os vinhos de inverno de SP e MG e com a já reconhecida e consagrada vocação ao Cabernet Franc e ao Merlot do Vale dos vinhedos vão se solidificando certas tendências, sem que se precise engessar em IGTs cada uma delas.

Pois foi em Garibaldi que se deu o Nebiollo Bettu, em Flores o Serena PN; em Rosário do Sul o Routhier&Darricarrere Cabernet Sauvignon; foi na Campanha de cá que se deu o Castas Portuguesas Miolo…Não somos a França que tem tradição a defender, cepas em extinção a preservar, mercados constituídos com expectativas a cumprir.

Por estas razões as Denominações de Origem e suas regras de procedimento permitiram o desenvolvimento de muitas regiões.

Aqui não temos passado a defender, ao contrário, temos apenas futuro a consolidar.
Determinar que um vinho é de tal região apenas quando atinge determinados níveis de concentração de álcool, quando se utiliza apenas de uvas cultivadas na região determinada, em nome da qualidade, OK.
Além disso é gesso, é tiro no pé.