Parece mentira, mas estou escrevendo MAIS um artigo sobre a Toscana, não acredito.

Esta região com seus sangioveses já está me irritando, vão pensar que eu só me interesso por ela e ai então ninguém vai ler nada que eu escrever sobre outras regiões, o que não é justo.

Este artigo aí, escrevi como colaborador a pedido da minha saudosa amiga Silvia Franco, do site Vinho & Gastronomia.

Em viagem pelo sul da Toscana, ouvi o barulho dos castelos formados pelas 217 Denominazione d’Origine Controllate (DOCs/DOCGs¹) caindo pelas encantadoras ruelas medievais dos pequenos burgos e cidadelas locais, ladeados por vinhos feitos de acordo com regra alguma pré-determinada, feitos simplesmente da melhor forma possível, com as melhores uvas possíveis, como ensinaram os Antinori e seus seguidores da década de 1970, que provaram por C de Cabernet + M de Merlot, que a região era apta não apenas para produz grandes vinhos a partir de suas uvas autóctones e seus métodos tradicionais de vinificação, mas também para produzir grandes vinhos com uvas francesas e outros métodos.
Quem caiu não foram propriamente as Denominações que continuam existindo e eventualmente até se expandindo.
Quem tombou como peça de museu foi a sua razão de ser, a sua exclusividade, o seu conceito de sinônimo de qualidade regional. Ter uma produção de alto nível internacional com uvas de fora da região colocou em cheque todo o sistema de controle dos vinhos toscanos, baseados em denominações regionais, fez com que estas perdessem boa parte de sua razão de ser.
Mas apesar das Denominações, os vinhos se fizeram superiores, sejam eles feitos de acordo com as regras estabelecidas ou em desacordo com as ditas cujas, a partir de uma impressionante adaptabilidade dos terroir, aliada a grandes investimentos em insumos, equipamentos e formação enológica, melhoras que se multiplicaram por toda a região, nesta área que tem como pólo norte San Giminiano e pólo sul Scansano, ilustrada por cenários deslumbrantes como o do parque tombado Val D’orcia, tendo como epicentro a cidade/museu Siena.
Em Scansano, surpreendentes vinhos da denominação Morelino di Scansano, mas também excelentes Alicante, Merlot, Syrah e assemblages proibidas com Sangiovese. Em Val d’Orcia ao lado de grandes vinhos típicos, o mais maravilhoso chardonnay sem madeira, fora das delimitações de Chablis.
Próximo a Montalcino a reinvenção do método Governo sulla Toscana², de braços dados com outros que ferem as exigências que pretendem defender a supremacia Sangiovese.
Sob a inócua, de tão abrangente, denominação Colli Senese, deparou-se com grandes vinhos de estrutura e concentração que rivalizavam com os Brunello di Montalcino, mesmo não tendo em suas veias a poderosa Sangiovese Grosso, que lhe dá a conhecida musculatura tânica.
Por conta desta diversidade conquistada e pelo resultado conseguido a partir dela, abriu-se espaço para a pesquisa de novas misturas de cepas jamais postas juntas, para estudo renovador de uvas quase extintas como, como a Pugnitello – última sensação entre os enólogos da Toscana – além de novas formas de oxigenar o vinho em sua fermentação, uso de madeira francesa no lugar da tradicional vinda da Eslavonia (Áustria), novas preocupações com a manutenção da terra sem defensivos etc. etc.
Ou seja, a mesma mão que afaga as Denominações da região dá-lhe as costas. O melhor produtor da região, que luta para a valorização da sua DOCG, faz e vende vinhos fora das Denominações, usando, para burlar a regra, determinações de menor valor com a Indicazione Geografica Tipica (IGT), o que debilita a força das Denominações que deveriam defendê-lo.
A história pede um parágrafo
As denominações foram imperativas até as últimas décadas do século passado, quando o Chianti nadava de braçadas, reconhecido como um vinho típico de qualidade, vendido como o vinho mais emblemático dos imigrados oriundi, nas Américas e na Austrália, verdadeira bandeira vinificada dos italianos no exterior, sinônimo da pátria nas taças, acompanhamento ideal da macorranada da mamanos Domingos.
Todos os vizinhos da região de Siena queriam tirar suas casquinhas comerciais do estilo Chianti de ser e foi assim que em 1924 instituiu-se um Consórcio de produtores pela defesa contra o plágio, assumindo já então o seu símbolo de garantia – uma cinta ou selo com o Galo Negro identificador na garganta das garrafas.
A região era precoce, em matéria de delimitação, visto que o Grão Duque da Toscana Cosimo III, tinha determinado seus limites territoriais em 1716, 50 anos antes, portanto, da criação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, Portugal, sempre cantada como a primeira região do mundo a ser demarcada, citada inclusive como um dos feitos importantes do Marquês de Pombal.
Em 1932 já havia um significado preciso para a adjetivação “Classico” que iria acompanhar os vinhos feitos entre Siena e Sangiminiano, que concedia aos produtores de outras regiões da Toscana a simples denominação “Chianti” menos rigorosa, com menor teor alcoólico, com produção maior e pior.prestígio internacional da marca era grande, tanto que em 1933, quando o governo francês decidiu que o formato da garrafa dos vinhos deveria ter um padrão regulamentado por lei, a garrafa bojuda coberta de uma cesta de palha, aceita e consagrada como típica do Chianti, foi a única estrangeira a entrar na lista.
Historia à parte, as DOCs e DOCGs tornaram-se problema, neste novo milênio, perderam a condição de solução.
Pois quando você, simples consumidor, olha para a gôndola dos vinhos da Toscana e descobre que ela é formada por 200 denominações entre DOC e DOCG, fica tão indeciso que acaba decidindo por comprar um vinho que não gere tanta confusão na hora de servir – um vinho do Novo Mundo, por exemplo, que informa no rótulo a uva e a vinificação, é muito mais simples de entender, por mais que esta simplicidade possa ser enganosa! Bastaria, talvez, aos olhos do mundo que a Toscana, terra dos grandes vinhos da grande Sangiovese saísse por ai dizendo – somos os produtores de Chianti, produzimos a partir de Sangiovese e vinhos com outras uvas. Ponto final!
O escândalo do Brunello

Atualmente, a Denominação cria situações constrangedoras como a que aconteceu em 2008 com o escândalo da Brunello di Montalcino, quando a partir de uma demanda muito acima de sua capacidade de produção, muitos vinicultores “batizaram” seus vinhos com merlot e cabernet sauvignon, pois a regra estabelecida para o Brunello era de rigorosos 100% de Brunello e nada mais*. Por mais que a ação tenha sido ilegal, sujeita a multas gigantescas, o fato é que o vinho “batizado” não era pior do que o original, muito pelo contrário, foi descoberto exatamente por conta de seu estrondoso sucesso nos EUA.
O mercado mundial parece não ter condições de absorver, parece não querer absorver tanta diversidade. Até porque, só no Brasil, estamos bombardeados por mais de 25 mil rótulos a nos dar trabalho para identificar. O consumidor comum deve dizer “e que diferença faz um chianti daqui ou outro de lá, se as uvas são as mesmas”, viciado que está em pensar em cepas…
A origem das denominações
Esta coisa de Denominação tem na origem a vontade de proteger o sucesso de uma região, logo imitada pela vizinhança ou para proteger uma uva autóctone de uma invasão mercadológica qualquer, como bem demonstram as alíneas recorrentes, que obrigam um percentual mínimo de uvas da região, contra um percentual máximo de uvas de sotaque francês.
Mesmo na França, o efeito “trator” das grandes uvas internacionais sobre as uvas de regiões que não são as mais nobres, obriga o pessoal dos Pirineus a proteger sua pobre “negrette” autóctone, uma uva presente por lá desde as cruzadas dos anos 1000 da era moderna, criando recentemente (2005) uma denominação, a Fronton, que exige 50% de presença mínima desta uva e presença máxima de 25% da cabernet sauvignon ou da merlot, para que se mantenha acesa a identificabilidade local.
Sim, a França também complica, talvez até mais, com suas Appellation infindáveis. Mas ao menos lá, a denominação define que há de melhor sendo produzido na região, sem exceções. Ou seja, não se encontra um grande Syrah em St Emilion, como não se encontra um Cabernet Sauvignon no meio da Côte d’Or! Por lá, a ordem hierárquica é plenamente respeitada – a Appellation Borgogne Contrôlée, por exemplo, é a mais abrangente e a menos rigorosa em seus critérios de todas as denominações da famosa região produtora³, rotulando vinhos de vilarejos e micro regiões que não passaram nos testes de qualidade e exigências locais. Assim, a Appellation Côtes- des-Nuits Contrôlée, e mais restrita que a genérica, mas mais ampla e menos rigorosa que a Appellation Fixin Controlée, produzido num dos vilarejos que compõem a Côtes- des-Nuits. Simples assim, sem qualquer alteração de uva ou de vinificação.
Maravilhado com a qualidade do vinho Colli Senese que enchia a minha taça, o Asso, exemplar das 5.000 garrafas/ano, micro produção de um jovem produtor que havia conhecido no dia anterior, perguntei ao presidente Claudio Galletti, entre um gole de vinho e outro, no encontro realizado na inesquecível sede da entidade que ele preside, a Enoteca Italiana – entidade de defesa do vinho desde 1930, que promoveu e patrocinou a visita que gerou esta reflexão – o que ele achava disso tudo que eu vinha pensando.
Sua resposta veio na firmeza gentil, típica de quem foi forjado por um ambiente de muita discussão acalorada, própria da democracia plena que Itália viveu desde o fim da II Guerra Mundial: – Tens razão, não deve ser muito comunicativo estas tantas denominações aos olhos do estrangeiro, concordo. Mas se você pegar a história verá que a produtividade por hectare foi diminuindo a cada nova atualização regulamentar, assim como a plantação foi ficando cada vez mais rigorosa, obrigando o agricultor a mudar para melhor seu sistema de plantação e vinificação. Estamos a 80 anos fechando o cerco sobre os que produzem mal, transformando-os em orgulhosos produtores de boas uvas e, consequentemente, bons vinhos. Sem negar a tradição, somos melhores do que fomos. Além do mais, as denominações protegem as uvas autóctones, ao mesmo tempo que não mais impedem a presença das uvas estrangeiras, que tão bem se deram por aqui. O próprio Asso que, nota-se, tanto te entusiasmou era produto vendido a quilo para a produção de vinho de mesa, até dez anos atrás… Veja que beleza eles estão conseguindo fazer!
A resposta convincente trazia em seu bojo um argumento imbatível – o sucesso crescente da região ao se colocar no mercado, o reconhecimento de qualidade e relação de preço, como se estas centenas de denominações revelassem um tesouro a ser descoberto em cada garrafa, cujo preço não superava em nada os praticados pelas denominações consagradas, Chianti Classico, Brunello e Rosso di Montalcino, Vin Nobile e Rosso di Montepulciano.
O Imbroglio Toscano se sustenta, a seu modo, bipolar, esquizofrênico. Mas quem disse que a esquizofrenia, em se tratando de vinhos, é uma doença a ser tratada?