O polvo através dos tempos

Ele vem me acompanhando há muito tempo. Quanto mais entrou em moda, mais me afastei. Meu gosto pelo inusitado manda.

Aqui vai um velho artigo escrito nos primeiros anos deste milênio.

Das lembranças dos seus primeiros polvos ibéricos aos exemplares trazidos hoje de Santa Catarina, nosso colunista se delicia com as histórias e sabores da iguaria

Por Breno Raigorodsky*

caça ao polvo
Em tempos de lula, venho a público dizer que sou polvo. E dele não abro mão, pouco interessa saber o que pensa o rabino e o endocrinologista. O rabino, porque se trata de quitute proibido pelas leis da religião judaica, como o são tantos outros animais e outras práticas gastronômicas. É um saco ser judeu do ponto de vista da comida, por melhor que sejam as compensações que a comida judaica nos dá. Imagine só, abrir mão do polvo só porque um bando de rabinos e profetas anteriores ao século II não acreditavam nas condições de higiene e conservação da época. Eu se fosse eles, descendentes de nômades do deserto, ignorantes sobre os frutos do mar com os quais não convivia, proibiria também, por via das dúvidas. Um pouco como fazem as “otoridades” sanitárias que taxam um prazo de validade para o azeite, como se o óleo de oliva fosse perecer na despensa do consumidor.

O endocrinologista, porque é faculdade do octopus ser dotado de alta taxa de colesterol, razão moderna para que tudo que tenha gordura animal, a dita saturada, seja considerada nociva à saúde. É, em minha defesa invoco o chamado Fenômeno Francês! Não, não se trata de um jogador de futebol comparável ao nosso Ronaldinho, o Fenômeno. Trata-se aqui do fenômeno social, gastronômico, antropológico e nutricional, que faz com que haja equilíbrio entre a gordura que consomem e os elementos ácidos, como o vinho, que a dissolvem no organismo. É um fenômeno que nega todas as teorias sobre as gorduras animais, pois os franceses são os que menos apresentam acidentes cardiovasculares, apesar da dieta plena das ditas gorduras. O povo francês, como sempre, continua não dando a mínima para o que os estrangeiros dizem sobre eles, desde a época do Asterix.

Estou falando de polvo em geral, limpo, cozido e frito à moda provençal – com alho, vinho branco, azeite e salsinha; pouco cozido à moda japonesa – para ser comido embebido em shoyu com wasabi; cozido e grelhado à moda cretense; ensopado com batatas, pimentão e alho à moda galega ou, na versão menos caseira, o polvo cozido, a batata cozida regados por uma mistura de alho, pimentão e azeite em abundância; polvo a la plancha, servido numa tábua de madeira, cortado em fatias finas, polvilhado com pimentão e embebido em azeite extravirgem.

Por ele peguei gosto pela cozinha. Através dele aprendi a respeitar o paladar do meu pai. Meu primeiro polvo foi na Ponta da Praia de Santos (SP), no restaurante português de nome Caravelas, numa época em que eu tinha lá meus 8 anos de idade e minha avó mantinha um apartamento no Boqueirão de Santos, nos cafundós da década de 50. Veio macio, cozido com pimentão vermelho, muito alho e batatas holandesas grandes. Eram espanhóis os polvos do Caravelas e pesavam ao menos 3 kg, o que fazia do prato algo pantagruélico, com aqueles braços arroxeados, cheio de ventosas que pareciam de plástico. Com menos de 10 anos de idade, imagino ter gostado porque gostei, mas talvez principalmente porque ali vi uma oportunidade de me destacar de meu irmão mais velho, meio fresco com comida. A partir de então, o polvo se tornou uma espécie de prêmio de confraternização para datas ou acontecimentos em particular.

arroz de polvoAté os meus 16 anos, pensava que polvo era um produto da Espanha, uma concessão aos vizinhos que os donos portugueses do Caravelas faziam, até que vi na vitrine do extinto restaurante português Parreirinha um polvo simplesmente cozido, exposto ao lado de uma rã cozida. Perguntei como serviam e me disseram que o melhor era daquele jeito mesmo, cozido, acompanhado de ovo, cebola, alho, brócolis e batatas cozidas, tudo regado ao azeite extravirgem. Portanto, naquele momento ampliava meus horizontes e passava a pensar que polvo era matéria da Península Ibérica.

tako sushiO próximo passo foi na Liberdade, na rua dos Estudantes, dois anos depois. Às 19h, quando o Tanji abria as portas, sentando no balcão, em frente ao Tanchan, me deparei com um polvo enorme, pendurado numa barra por um gancho logo acima do balcão. Tanchan disse que fazia sushi e sashimi com o polvo e me deu uma fatia de sashimi para experimentar. O bicho era o mesmo, mas muito firme na consistência. Tanchan me explicou que o jeito japonês era de pouco cozimento, menos de 10 minutos. O sashimi vinha com o preparo regular, wasabi, shoyu e nabo ralado. O polvo ganhava uma latitude oriental. Tornei-me freguês daquele polvo firme, quase duro, descobrindo que assim ele jamais se tornava borrachento.

polvo2Meu primeiro e único polvo francês foi feito por mim, num agosto de férias escolares, no apartamento de um amigo que tinha ido tomar sol nas praias do norte da África – como tinha se tornado comum entre os brasileiros àquela época. O apartamento cedido ficava numa ruazinha de nome estranho, a rua des Déchargeurs, ao lado da rua de Rivoli. O nome da rua traduz-se livremente por a “rua dos lixeiros”, talvez porque ficasse quase em frente do velho Les Halles, o Mercadão Central parisiense e a ruazinha devia servir de local de descanso para o pessoal da vassoura que pegava no pesado.

Num belo dia (na verdade, já era o começo de uma bela noite), cansado de comer ovo frito, sanduíche de queijo e salsichão com mostarda de Dijon, apareci com um polvo pequeno, de uns 700g. Minha companheira por 10 anos, grande cozinheira de forno e fogão, doces e salgados, recusou-se a “dividir a cozinha com aquele animal nojento”, mas concedeu dar-me todas as orientações da peça contígua, eu na cozinha, ela na sala dando as orientações – “descascou o alho? Pôs uma colher de sopa de azeite na panela?”. E foi assim que preparei meu primeiro prato, meu primeiro polvo, monitorado à distância, como se eu fosse uma televisão!

polvo espanholNa Espanha, em um restaurante pequenino na cidade de Salamanca, atrás da Plaza Major, me serviram um polvo para se reverenciar. Um polvo gigante, apenas cortado em rodelas finas sobre uma tábua de madeira escura, polvilhado com pimentão, uma espécie de páprica espanhola, regado com azeite… pulpo a la plancha. Salamanca ficou marcada na memória como a cidade do Maimonides e do pulpo a la plancha.

Na Calábria, a dois quilômetros de Tropea, uma cidade incrustada no morro, a olhar o Tirreno lá embaixo, aprendi a pegar o polvo no fundo do mar. Na pequenina praia de Parghelia – uma piscina de água límpida azul-turquesa isolada por 7 grandes pedras – acampava um dos 500 marinheiros que voltavam de férias para casa, depois de um ano navegando em alto mar nos transatlânticos luxuosos fazendo faxina, servindo nos restaurantes, trabalhando nas máquinas. Parghelia, uma cidade nomeada desde a Magna Grécia, com suas mulheres casadas, solitárias, à espera de engravidar nas férias anuais.

O marinheiro acampado saía a mergulhar e sempre voltava da água com algum quitute bom. Quando voltou com o seu 3º polvo catado, pedi que o soltasse para que eu pudesse mergulhar atrás dele, para ver o que o animal faria. Na água, refeito do contato mortal com o ar, o bicho soltou sua tinta despistadora e atirou-se como um objeto movido a jato para o fundo do mar, 3 metros mais fundo. Não teve sorte, pois o melhor que encontrou para mimetizar foi a areia do fundo, nenhuma pedrinha para nela se agarrar. Foi fácil recapturá-lo, transformá-lo em minha primeira e única presa, minha única caça animal. Voltei para a superfície contente por não tê-lo perdido, mas envergonhado por ter vencido um enfrentamento extremamente desigual. Eu com meus 72 quilos de outrora, contra ele, pesando no máximo 1 kg! Mesmo assim, o rapaz urbano que costumava ser, acostumado ao esporte de ginásio e a cavalgadas sobre cavalos alugados, escapava do civilizado e caçava um polvo indefeso, identificado por olhos muito mais argutos – os do marinheiro – do que os meus viciados por um contagioso astigmatismo incurável.

De volta ao Brasil, desço do navio no porto de Santos, vendo o aceno emocionado de meu pai, dá-me aquela vontade de polvo, por que não? Quase três anos sem o polvo do Caravelas, nem sei como pude agüentar…

Na madrugada paulistana, polvo a provençal do Giggetto, refogado ao alho e óleo, com salsinha, acompanhado com arroz. Na 13 de maio, misto de frutos do mar sobre o abadejo ao forno do Mexilhão. Muitos, muitos polvos depois, ainda iria me emocionar com a novidade proporcionada pelo povo de Creta, que grelha polvos apenas cozidos, para na mesa regá-los da sua receita de longevidade, o azeite sempre bendito.

Pois, para muitos, o polvo está acima do bem e do mal. Este molusco mais inteligente que a maioria dos animais que habitam as profundezas de todos os oceanos, é muito pescado por povos de quase todos os povos, fazendo parte ativa da culinária de um sem-número de tradições, apesar de não povoar os grandes receituários, onde pouco aparece. Talvez porque seus melhores preparos sejam de uma simplicidade tal, que o cozinheiro não se sente desafiado.

E, no entanto, o polvo é rei para os mediterrâneos, o polvo é o imperador para os japoneses, o polvo é tudo para os espanhóis que andam fazendo de tudo para criá-los em cativeiro, ainda sem o sucesso esperado. Agora, nesta época de lula, que o polvo catarinense chega também aos 3 kg, visto que a pesca se especializou e os espécimes maiores estão vindo mais amiúde, que viva também o polvo brasileiro!

Polvo a la plancha

  • Esquente água numa panela grande o suficiente para imergir o polvo.
  • Adicione a cebola cortada ao meio e as duas folhas de louro (alguém sugere que se adicione uma rolha ao cozimento, o que garantiria a maciez do polvo).
  • Submerja 3 a 4 vezes na água fervente para escaldá-lo.
  • Somente quando a água voltar à grande cocção ponha o polvo para cozinhar.
  • Reduza o fogo e deixe cozinhar por 20 minutos, caso ele tenha até 1 kg. O tempo de cocção poderá chegar até 50 minutos, caso seja um animal de mais de 4kg.
  • Tire o polvo do fogo e corte em rodelas de meio dedo.
  • Polvilhe com a páprica e regue com o azeite.
  • Sirva com batata cozida, cortada em rodelas.

 

* Breno Raigorodsky é filósofo, publicitário e gourmet. Escreve regularmente sobre vinhos e comida.