texto requentado do Astor

Elementar, meu caro Watson.

São 3,30h da manhã e acordo de vez para estancar um pesadelo que me parece real demais para ser um sonho.

Nele, sou um personagem solitário que se enche de cigarro e uísque, e passa a vida bisbilhotando os outros, legítimo herdeiro de uma tradição literária que foi ao cinema nos anos 40 e fez o nome de gente como Humphrey Bogart e Dashiel Hammet.

Acordo todo suado, fui pego em meu trabalho, sou um fracasso como delator, não serei pago sequer por tudo o que comi e bebi neste dia de perseguição.

No sonho, meu trabalho se limita a descobrir com quem M, 38, 1,71m, morena, cabelos longos almoça e janta no Astor, toda vez que meu cliente – seu marido – viaja a trabalho, coisa que acontece ao menos uma sexta-feira do mês.

Chego às 12,30h não querendo chamar atenção para os meus cabelos eternamente despenteados e meu porte físico de estivador decadente. O cardápio tem de tudo que um cara na faixa dos 60 anos pode ter na memória, coisas do tipo sopa de cebola, strogonoff, sanduíche americano, Dry Martini etc.

Meu olhar clínico se surpreende com a quantidade e qualidade de uísques e outros destilados dispostos no bar de vidro e espelho que forra uma das paredes. Dezenas de garrafas semi-usadas de Johnnie Walker – e não apenas Red Label – configuram um grande e legítimo Whisky-Club como não se faz mais.

De onde estou vejo M chegar acompanhada de uma mulher de sua idade e altura, às 12,45h, ambas com roupa de ginástica, fitas no cabelo, tênis nos pés.

Dividem o prato do dia, o “Cozido Astor”, e uma garrafa d’água enquanto conversam descontraídas. Estão bem longe de mim, mas ao alcance dos meus olhos treinados para acompanhar qualquer movimento suspeito.

Ocorre que meu olfato também é treinado e insiste em desviar minha atenção, principalmente quando é atingido pelo perfume irresistível de mariscos à moda dos marinheiros, acompanhado de batatas fritas… Não apenas um ícone belga -se enganam os que pensam que é prato francês- como um dos meus pratos favoritos. Num segundo, sei que o prato está bem feito, seja pela espessura do molho, seja pela maciez evidente dos mariscos de casca preta, seja pela qualidade da fritura das batatas fritas.

As mulheres estão indo embora, e meus sentidos se apuram para concluir que terminaram a conversa e a comida sem qualquer percalço pelo caminho.

Reconheço que me ative tempo demais julgando o picadinho com arroz e feijão, pastéis, banana e farofa que passaram na minha frente. Ou mesmo a porção de croquetes de carne que passou fumegante logo à minha direita. Ou a altura e espessura do colarinho do chopp que foi sendo servido o tempo inteiro.

Pago e saio com a impressão de ter me interessado mais na comida do que no motivo da minha presença naquele local.

É noite, 19,30h, escolho uma mesa bem mais perto da porta da frente, longe da praça dos garçons que me serviram no almoço. Reflito que este Astor não se parece tanto com seus irmãos famosos, o Pirajá e o Original. É como se o grupo proprietário tivesse dado um passo à frente não querendo mais apenas reproduzir os bares cariocas em São Paulo.

M já está lá, acompanhada de uma mulher bem mais velha que ela, igualmente alta e esguia, que mostra uma deslavada intimidade ao servir-lhe na boca um bolinho de arroz muito sequinho. Chega um terceiro personagem, um rapaz longilíneo, mais novo que ambas, que, com sua presença, destrói qualquer suspeita de lesbianismo na relação entre as duas, pois o abraço do rapaz -tanto numa quanto noutra- deixa claro que são parentes sanguíneos, a mais velha é mãe dos dois, irmãos que se gostam e não se vêem há algum tempo.

Bebo uma taça de vinho branco, um Sauvignon Blanc do Vale Casablanca, onde se faz o melhor desta cepa no Novo Mundo. Reflito o que dizer para este homem que me contratou. M é objeto de olhares famintos de quase todos os homens que passam por ela, numa seqüência de paquera que ela tira de letra, pois não quer nada com ninguém. Não quer, mas – atenção – sabe o quanto vale e sabe que pode querer, se o marido ficar pegando muito no seu pé.

Bolinhos de arroz passados, os parentes saem juntos de cena deixando M sozinha por muito pouco tempo, porque logo dois casais se aproximam e tomam o seu lugar na mesa dela, numa coordenada dança das cadeiras. Todos têm mais ou menos a mesma idade, todos conhecem bem o cardápio da casa e fazem seus pedidos sem qualquer hesitação.

Estou numa mesa bem perto deles e mantenho-me atento a ponto de M poder dirigir-se a mim sem aumentar o tom de voz, dizendo com um divertido sorriso nos lábios, “Ei você deve ser o detetive da hora… Sim, você mesmo, de cabelos despenteados e porte de estivador decadente! Venha comer conosco sua deliciosa panelinha de ragú! Assim fica bem mais fácil você ouvir a nossa conversa e ainda me faz companhia, não é?”

Respiro aliviado por saber que tudo não passa de um sonho, que esqueço quase que imediatamente.

É muito cedo, mas posso aproveitar a madrugada para escrever o artigo para a Look.

Acho que vai ser sobre o Astor, desta vez, aquele meio bar que faz parte do grupo do Original e do Pirajá.

Astor: Rua Delfina, 163 – Vila Madalena – (11) 3815-1364
Funcionamento: de segunda a quinta: das 18 h às 3 h; sexta e
sábado: 12 h às 4 h; domingo: 12 h às 0 h. Lotação: 180 lugares.
Tem ar condicionado.
Cartões de débito: VisaElectron, Mastercard, Redeshop
Cartões de crédito: Visa, Mastercard, Diners, American Express
Estacionamento: com manobrista – R$ 10,00

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