O artigo abaixo foi escrito para o Jornal Vinho & Cia. e publicado – com alterações de ordem normativa – esta semana. As fotos: roubei da internet, do Sérgio Queiroz e do site do Rancho do Rio Doce
A viagem começou na rua Machado de Assis, 556, Vila Mariana, São Paulo, onde fica o restaurante Rancho Rio Doce, especializado em peixes dos rios brasileiros, ex-parceiro do Rancho da Traíra de Mogi das Cruzes.
Teve como passageiros cinco intrépidos viajantes regulares, acostumados a todas as misturas continentais, peninsulares, montanhosas e costeiras. Começou na Grécia, acabou na Sicília e passou pela Europa Oriental, sem grandes baldeações.
Fomos nos alimentando do que os rios nos ofereciam: Asas de Pintado na grelha, Iscas de Pacu, Espeto de Pintado com cebola, e Traíra frita, todos muito bem feitos, com seus molhos, pirões de acompanhamento e uma pimenta muito boa.
Entre 5 rótulos da viagem, o vinho que se deu melhor com o jeitão de churrascaria de peixe do Rancho Rio Doce foi o Sigálas Assyrtiko 2017 – um grego com a sua uva branca mais conhecida.
Mas a melhor surpresa veio da Bulgária, com um Viognier passado por madeira francesa, o Burgozon. Ele ficou meio fora de turma, não dialogava bem com os outros, muito mais joviais do que ele, e a conversa não fluía.
Mas ele não estava lá para conversar, estava para mostrar que os búlgaros fazem alguma coisa de bom, além de burekas e púcaros.
Não que dois vinhos eslovenos e um siciliano não tenham se dado bem. Eventualmente lhes faltaram, digamos, musculatura para suportar a viagem por todos os rios, às vezes caudalosos, às vezes gordos demais.
O prato maior vilão para os vinhos apresentou-se logo no começo: Asinhas de Pintado na brasa, uma delícia de lamber os dedos, mas difícil de casar. Assustou até os mais intrépidos dos viajantes, que chegaram a engasgar e pensar em trocar os vinhos por uísque ou caipirinha.
Brincadeiras fluviais a parte, com 10,5% de álcool, um famoso Puklavec de Sauvignon Blanc e Furmint sofreu, e ficou levinho demais.
Não sei dizer se pelo seu aroma de maracujá da Sauvignon Blanc, ou por seu jeitão de húngaro continental (expressão de pertencimento da região que fez parte do Império Austro-Húngaro e presenteou-lhe, naquele período pré-século XX, com a Furmint, a sua uva mais famosa). Ipsis litteris para o seu irmão de nome SB Vinhas Velhas Kobal, igualmente Sauvignon Blanc, também com maracujá, acidez, grapefruit, acidez, frescor.
Mas não foi somente assim. A maciez e a secura de uma Isca de Pacu mostrou que as águas turvas amazônicas podem trazer uma calmaria desejada para os vinhos.
Todos eles se deram melhor com um Pintado na grelha, com uma cebola que trouxe dulçor. O tratamento da carne seca com alguma gordura lembrou uma carne vermelha. Do mesmo modo, os vinhos foram bem com o gosto forte e a carne firme de uma Traíra, muito bem frita. Com esses dois pratos viajaram muito bem, e chegaram à Sicília transbordando familiaridade.
Certo mesmo teria sido viajar aos pares, quem sabe o Puklavec abrindo alas para o Burgozon, um complementando o outro, às vezes com acidez anti-gordura em excesso, às vezes com estrutura para peixes mais carnudos.
A Sicília se intrometeu, sempre bem-vinda, sempre mediterrânea, uma delícia entre a Magna Grecia, o Império Otomano e as culturas peninsulares, Itálica e Ibérica. Veio nobre através das águas de um premiado Donnafugata, de tantas belezas cantadas em prosa e verso.
Mandou bem este exemplar – o primeiro Donnafugata concebido e aprovado por todos os mares –, de nome Anthìlia, cuja mistura de uva é capitaneada pela Catarrato, que exala flor branca e pêssego.
Moral da história: as Asinhas de Pintado assustaram os menos acostumados aos incômodos da turbulência do barco. Mas os outros pratos que vieram ficaram em paz com os cinco ótimos vinhos!