LISBOA E SEUS VINHOS

Há que se dizer, o Atlântico e sua salinidade oceânica, influencia os vinhos a seu alcance, como é o caso notável dos que trazem, desde a primeira década do milênio, a Denominação “Lisboa”, a mesma que já se chamou Estremadura. Os brancos mostram-se ácidos e salgados, o que mais agrada do que desgosta, seja o degustador amador ou profissional, pois é característica de tantos vinhos consagrados, é apenas um traço identitário, jamais um defeito.

Quinta do Monte d’Oiro

Os tintos não se traem tão fácil, como é o caso extremo do Quinta do Monte d’Oiro, que pela boca não se advinha de onde vem, com seus 95% Syrah e 5% Marssane, a nos lembrar que nem tudo que é do Vale do Rhone é somente dele. Este vinho poderia ser de lá, tão continental, e, ao mesmo tempo, tão Lisboa. É verdade que passa por vinificação primorosa desde a planta até os barris de madeira francesa virgens para acolhê-lo educá-lo por 18 meses, sendo que a pós graduação se dá em garrafa por ao menos 15 meses, liberado então às gôndolas. Talvez por tudo isso, merece de certificadores notas próximas do máximo.

Se os brancos são indisfarçáveis e os tintos podem surpreender e enganar e superar toda e qualquer expectativa, o que dizer de um rosé, que pretende ser deus desta terra e conquistar a todos, mesmo além-mar?

Quinta das Cerejeiras Grande Reserva Rosé 2019 75cl

Vinificação: As uvas, provenientes das castas Castelão (85%) e Moscatel Graúdo (15%), são colhidas manualmente para preservar as suas características. Após serem desengaçadas e ligeiramente esmagadas, são submetidas a uma maceração pelicular ligeira, durante 6 horas. Seguidamente, após ligeira prensagem das massas, o mosto fermentou de bica aberta com temperatura controlada a 16º C, durante 20 dias. Estágio de 6 meses de estágio em cubas de aço inox.

Castas: Castelão e Moscatel Graúdo

12,5 Teor alcoólico (%); 6,7 Acidez Total (g/l); 3,22 pH

O QUE UVAS AUTOCTONES BRANCAS ITALIANAS PODEM TRAZER DE PRAZER

Estava escrito nas agendas, o encontro no Cosi da Rua Haddock Lobo seria quente, com uvas autóctones da Itália.

A prova mostrou-se de bom nível, com 7 amostras. Sicilia, Sardenha, Toscana, Puglia, com direito a Etna.

Engraçado. Eu peguei o que tinha, não sai pra comprar a minha garrafa. Teria levado um Friuli, um Marco Feluga, se tivesse ainda o Molamatta, visto que o FranzHaas Pinot Grigio não me dava muita certeza…afinal, Pinot Grigio é francesa (Pinot Gris), por mais que esteja dando tão certo nesta Itália do norte. Imagino que todos fizeram o mesmo, mas alguns com mais orgulho que outros.

O Helios Cantina Carbone que levei mostrou-se fraco para a turma. Vermentino e Nasco, 50% pra cada uva, um vinho da Sardenha, de um IGT Isola dei Nuraghi. Se fosse uma degustação aberta, o exotismo da sua procedência, influenciaria sua avaliação. A presença da uva Nasco, praticamente ignorada até na Itália, daria um toque de curiosidade a mais.

Pois bem, Sardo ou Toscano, a Vermentino foi uva mal avaliada pelo grupo! Saímos confirmando um comentário que rolou na degustação, sugerindo que se tratava de uva menor.

E, no entanto, pasmem, um Vermentino sardo é destaque para a Decanter inglesa, para a revista Italia A Tavola, para a Wine Spectator e outros críticos, que está entre os 12 melhores vinhos da Itália, segundo a revista Italia a Tavola e : Trata-se do Il Vermentino di Gallura Bèru, DOCG, da cantina Siddùra, que faz parte do exclusivo grupo dos “Super-Italians”, os 12 melhores italianos que representam o futuro da enologia italiana.

Faz sentido, porque afinal produtores de prestígio indiscutível como Rocca delle Macie de Maremma e Antinori do Chianti Classico, apostam milhares de garrafas nesta cepa e, pelo visto, estão bem felizes com os resultados.

Tirante os Vermentino, a turma era boa, tínhamos grandes amostras, como as campeãs Catarrato Etna The Bianco Benanti e Fiano, apesar da ausência importante de alguns vinhos que são TOP de linha na Itália, como os Verdichio, Lugano, Garganega – responsável em parte pela Soave vêneta e tantos outros que são ótimos na exportação, melhores ainda no consumo local.

Acho que os próprios italianos não valorizam seus brancos de qualidade superior. Lembro de uma longa entrevista que fiz com o Pio Cesare, presidente herdeiro do reinado Pio Cesare de Alba, um dos mais importantes produtores de Barolo e Barbaresco – Por que dois chardonnay e nenhum branco autoctone, perguntei. Gostamos muito de nossos brancos, não nos importamos com o que pensam os jornalistas, não apostamos muito nas uvas locais como Roero e Arneis, nossos clientes estão satisfeitos tanto quanto nossos enólogos e outros responsáveis, respondeu ele do alto de seu trono piemontês.

Asprino di Aversa, região de Napoles – ainda tão pouco conhecida fora da Itália – é um dos que merecem aposta mais constante(https://www.tenutafontana.com/alberata/)

. Os já citados Soave e os Alto Adige são exceções, sempre mantiveram uma multidão de fãs por toda a parte, mas o que dizer do que segue:

Para a Wine Enthusiast 2021, o 2º colocado entre 22.000 vinhos degustados foi o Bucci Verdichio dei Castelli di Jesi, importado pela nossa Decanter, vendido ao preço de R$124,00. Pela mesma prova, o Soave Classico Pleoropan ficou em 15° lugar; como todo Soave, mescla Garganega e Trebiano.

É que nas escolhas de exportação que temos problema de imagem, o que me levou, uma vez, dar uma aula, cujo título era “O pior e o Melhor estão na Itália”. Não digo que os Valdobiadene são horríveis, mas estão longe de competir com os grandes espumantes portugueses, italianos e espanhois, para não dizer dos franceses. Competem mais com os Asti, que atingem não mais de 8% de álcool…para não dizer dos Lambruscos de Bologna e arredores, vinhos que muitas vezes envergonham os produtores mais sérios.

Uvas do Etna, da Sardegna e da Puglia, são tão válidas como tantas outras da Itália, mas não são as que os italianos mais tomam, estão mais novidadeiras, pois a Bota consome e exporta milhões de litros por ano.

Em suma, a prova foi ótima, mas certamente o universo demontrou-se amplo demais. Quem sabe fechamos o cerco por regiões da Itália, numa próxima degustação!

BAR, BOTECO, BOTEQUIM, RESTAURANTE SOROROCA.

O bar é aquele espaço onde as pessoas vão para beber e jogar conversa fora.

O bar, propriamente dito, desde o século XVIII, era caracterizado por uma “barra” de ferro colocada a 0,5m de distância do balcão, protegendo as garrafas de mãos sôfregas do trabalhador, que, em determinado momento do fim do dia, morria por uma dose de qualquer coisa que estivesse ao alcance das mãos.

A barra afastava os mais intrépidos e deu tão certo, que todos os estabelecimentos com aquelas características imitaram a iniciativa.

Com a Revolução Industrial, e dada a característica das cidades – que acumulavam multidões ansiosos e esperançosos à espera de uma chance de ser explorado nas indústrias que se formavam – regulamentou-se o horário de abertura e fechamento desses que viriam então a serem denominados de Pub, corruptela de Público, Public House, espaço popular.

Bar, passou a ser sinônimo de lugar onde se vai ao balcão para pedir uma bebida, eventualmente algum acompanhamento.

São parentes próximos do Saloon do oeste longíncuo norte-americano e dos Izakayas.

“Bar” tornou-se uma proposta afetiva, muito além do que o caracterizou nos idos dos séculos passados.

Tornou-se um estar confortável, medida pelo líquido que vai beber, no quanto vai comer e na forma de ser servido.

O Bar Sororoca nasce deste jeito, com uma pegada praiana, com visitas reinstaladas de pratos tradicionais de nossos pratos de rio e costa Atlântica, de Belém até o sul do país.

Com um balcão simbólico, apesar de sua clara vocação de serviço em mesas firmes, pratos de tamanho médio, talhares com design, decoração de tiras de palha, muito apropriado ao estilo de comida que se serve por lá.

É bar na sua programação, nos horários que abre e fecha. Mas é restaurante, no saber-fazer dos responsáveis pela cozinha e pelo dinheiro, todos com grande quilometragem bem-sucedida, na arte de fazer boa comida, bem servida. Sem medo de ser feliz.

Os sócios são Gustavo Rodrigues (Lobozó), Marcelo Bastos (Jiquitaia) e Thiago Castanho (Remanso do Peixe), que foram buscar na expertise mais que comprovada da dupla Daniela Bravin e Cássia Campos (Sede 261, Huevos de Oro etc.), a carta de vinho que responde ao tanto de sal, areia e mar que se encontra no cardápio.

Horário inicial de funcionamento

Sexta 19h – 24h

Sábado 12h – 16:30h e 19h – 24h

Domingo 12h – 16:30h

Informações de cardapio e reservas podem ser encontradas em sororoca.com.br

Fotos do Kato (@Kato78)

O RHONE e o CORDEIRO

Abril, foi o mês de Chateauneuf du Pape branco e tinto, Hermitage, Cote Rotie, Plan de Dieu e Muscat Beaumes de Venise.

Difícil imagina algo superior, visto que todas as amostras responderam super bem ao chamado dos olhos, narizes e bocas.

Começamos os trabalhos com o Branco da região de meridional, onde os Papas do século XIV passavam o verão, um pouco para escapar do calor provençal, um pouco para se livrar do fedor sufocante, espalhado como um ventilador divino pelo vento Mistral, sempre presente. Terminamos com o branco de sobremesa, o Muscat que é considerado uma joia única pelos franceses, no mesmo patamar de qualidade que seus excepcionais tintos, meritosos de nota máxima, por muitos dos principais degustadores do mundo.

CHATEAUNEUF DU PAPE C.ANONYME, XAVIER VIGON 2019 Blanc – 14,5% de álcool – Grenache Blanc 55%, Roussanne e Clairette. A Roussane passa 6 meses em madeira Consultor de mais de 200 adegas, Xavier Vignon é enólogo, muito antes de ser produtor. De sua adega saem vinhos elegantes e equilibrados, considerado um ícone da Appellation por RParker. O álcool, que poderia parecer excessivo para um vinho branco, está extremamente incorporado e fundamental na impressionante estrutura que este vinho tem, provavelmente ao processo passado pela Roussanne, enquanto as outras duas uvas ficam responsáveis pelo frescor e mineralidade do todo. Se pudesse escolher um vinho branco para o resto da vida, este estaria entre os favoritos.

TERRINE CASEIRA QUE ACOMPANHOU
A DEGUSTAÇÃO E PRECEDEU O
MIX DE CORDEIRO E A BATATA EM DAUPHINE

CHATEAUNEUF DU PAPE C.ANONYME, XAVIER VIGON 2017 – 15% de álcool – Grenache, Vaccarèse, Counoise, Mourvèdre, Cinsault, Terre noir. Os Chateauneuf du Pape abriram os trabalhos. Este vinho entrou na prova, um pouco para mostrar o outro lado divino da região, o único meridional, prova suprema desta AOc que se permite 13 uvas para misturar. Enquanto a maioria dos provadores adoraram o vinho, um de nossos parceiros, insistiu, nas duas fases da degustação – sem e com comida para harmonizar – que o vinho era indiferente, provavelmente porque sua predileção por vinhos mais alcóolicos e amedeirados, não lhe permite abrir-se para a diversidade.

HERMITAGE FERRATON 2014 – 13,5% de álcool, 100%Syrah, 14 meses em carvalho. Vinho biodinâmico desde sempre. Grande vinho, faz juz à fama da AOc, pleno de complexidade e tensão entre as especiarias que procuram protagonismo no blend de notas do primário e do terciário. Nota máxima, de acordo com boa parte dos degustadores.

COTE ROTIE MADINIÈRE 2013 – 88%Syrah, 2% viogner – 18 meses de barrica – 13% de álcool – Vinho de muito tanino, frutas e especiarias típicas de Syrah em ambiente frio. Os taninos domados pela madeira e pelo tempo, fizeram deste ícone o preferido por parte dos degustadores. Curiosamente, a presença mínima da viognier na mistura, é sentida pela acidez e uma leve carga de frescor, apesar da idade avançada do vinho.

FAMILLE PERRIN MUSCAT BEAUMES DE VENISE 2020 –15% vol de álcool, Muscat Blanc à petit e à gros grains, 125g/l de açúcar residual

Não confunda U com Unda

Este gradiente é enganoso, leva a opiniões erradas, imprecisas. Estas uvas são passíveis de vinificações que as colocam em outra posição.

Por exemplo, pouco tempo atrás tomei dois Pinot Noir – um da Borgonha, Domaine Pedrix – campeão em Londres de um concurso com Pinot Noir do mundo inteiro – outro o argentino Salentein Premium.

o badalado Salentein Pinot Noir – para quem não gosta de Pinot

Ambos fugiram da tipicidade, suas uvas foram colhidas além do tempo, ganharam forte intensidade, perderam as características identitárias.

Ao contrário, Merlot, Barbera, Tempranillo, Valpolicella transitam pelas cores.

O melhor exemplo é o do Valpolicella – nasce ralinho, o Valpolicella genérico. Encorpa quando é Classico. Encorpa mais, ganha álcool e cor quando é Reserva. Torna-se mais parrudo quando é Ripasso di Valpolicella. Para se tornar Amarone di Valpolicella, o vinho tradicional mais alcoólico, mais escuro e intransparente de todos.

Semelhante aos Zifandel, aos Primitivo (Salento, Puglia, Manduria), Nebiolo (Langhe, Barbaresco, Barolo, Sfurzat) etc. Na ânsia de padronizar, de classificar, comete-se muito mais merda do que acerto.

Aí vai um pouco de historia e especulação comercial – para ressaltar a qualidade indiscutível dos grandes do Piemonte, demorou para que alguém desse à Barbera o mesmo tratamento em planta e cantina que se dá para ao Barolo. Enquanto um tornou-se matriz de grandes vinhos o outro andou se popularizando, através de sua versão Langhe Nebbiolo.

IGT – Muito barulho por nada?!

Nerello di Mascalese pré-filoxera

Como todo produto que nasce no campo pela vontade do homem e não simplesmente pela força espontânea da natureza, o vinho nasce longe da terra, da chuva e do sol. Nasce na cabeça do agricultor/investidor, que almeja não perder o dinheiro que investirá.

Na hora que você escreve sobre rótulo, sobre o design do vinho, você está no campo do marketing. Quando você elege uma uva para plantar e transforma-la no seu produto, você está falando de potencial de qualidade, está falando do melhor que você pode fazer, mas também está falando de mercado, porque você não vai testar todas as uvas que existem, que com seus clones superam 20 mil opções entre as vitiviníferas.

Escolhas na vinificação, investimentos na praça de produção, escolhas nas garrafas no fecho, no rótulo, no estilo, no posicionamento do vinho, tudo isso passa pela imagem de mercado. 

routhier
Salamanca do Jarau da Routhier&Darricarrere, Rosário do Sul, Campanha Gaúcha

Por isso vai cruzar duas curvas essenciais: o que vai bem naquela determinada terra que pretende investir e o que o mercado sugere que se plante.

Para chegar à primeira decisão, entidades como a Embrapa vão ajudar muito, mas não apenas elas. Geologia, topografia, clima, qualidade das cepas e seus clones, escolha de leveduras, vão trazer uma uva  apropriada. Ela pode ser ao mesmo tempo Grenache, Negrette, Cinsault, Gamay e Touriga Nacional, cada qual em uma parcela do lote, numa determinada encosta, com uma determinada insolação.

Estas determinações limitam as alternativas, deixa a decisão ser mais técnica, menos solta ao prazer do enólogo.

Os vênetos foram buscar na memória a uva Teroldego. A tradição foi atrás da Alicante Bouchet, cruzamento em laboratório de Garnacha/Grenache e petit Bouchet . A Martini & Rossi trouxe o método Asti e implantou as moscatéis.

Quando o Mario Geisse foi a Pinto Bandeira, foi quebrando pedra em pedra, até descobrir o solo mais permeável, que melhor se adaptaria à plantação de chardonnay e Pinot noir para espumantes. O casal de enólogos da Cordilheira de Santana sabiam como, quanto e quando plantar antes mesmo de começar os trabalhos.

Mas se fosse presa demais, jamais teríamos um Petit Verdot 100% na Abadia Retuerta, Ribera Del Duero, terra de Tempranillo.

NicolasJamais teríamos um Malbec de primeira linha, visto que o Nicolás estava seguindo os sentimentos do seu pai, que adorava os Malbec que plantara. Evidentemente, a mescla se dá numa verdadeira curva de comunicação, onde o novo é renovação de algo já solidamente implantado.

Jamais teríamos um vinho 100% Rufete ou 100% Rabigato, uvas secundárias em suas regiões, muitas vezes sofrendo o assédio constante das uvas dominante do mercado. Assim como jamais teríamos estes Barbera barricados fantásticos que o mercado aprova e comprova, tirando das costas da Nebbiolo toda a responsabilidade de fazer grandes vinhos no Piemonte italiano.

Determinar que um vinho foi feito com as uvas locais, plantadas lá, vinificadas com um determinado protocolo que envolve uva, hectolitragem, processo de vinificação etc. foi uma necessidade de mercados já constituídos. Nunca é demais lembrar que depois da 1ª Guerra Mundial, no inicio dos anos 20 do século XX, o mundo estava morrendo de sede de vinho, seja porque era época de festejar, depois de uma guerra fraticida, longa e sangrenta, mas também depois que se inventou o enxerto com pé de uva americana, o que salvou as vitiviníferas da sanha mortal da Filoxera.


O mundo queria sorver os grandes vinhos consagrados antes do pulgão exterminar as vinhas mais importantes daquele mundo. E como produzir? Mais da metade dos proprietários de Bordeaux estavam falidos, comprando títulos dos bancos de financiamento agrícola, se vendo obrigados a comprar uvas de outros lugares para tentar honrar os pedidos de compra.

Boa parte destes viam aí uma oportunidade imediata de se livrar dos problemas financeiros. Procedimentos fraudulentos foram useiros na época, comprava-se onde houvesse uva pra vender, seja na Argélia, seja na Sicilia, seja na Espanha.

Em 1930, diante de uma avalanche de decepções, devoluções, propaganda negativa, o governo francês decidiu que devia não apenas financiar as dívidas acumuladas dos produtores pré-falimentares como estabelecer normas rígidas de controle de qualidade, formando então as famosas Appellation d’ Origine Controlée, AOC.

Na mesma época, a região da Toscana, na Itália fazia a mesma defesa de seu produto mais importante, do ponto de vista comercial – o Chianti, único produto não francês a ter inclusive suas garrafas certificadas em solo gaulês, com sua garrafa bojuda e coberta de palha, que de longe a identificava nas gôndolas. Seu sucesso inspirava imitações e mil Chianti foram surgindo, por toda a Toscana e mesmo fora dela. Sendo assim, criou-se a Denominazione di Origine Controlata Chianti, para depois de 3 anos, criar uma DOC específica para os Chianti Classici, a guisa de defender os produtores originais, que se concentravam entre Siena e San Giminiano.

414Ou seja, no início, não havia outra intenção que não proteger a imagem de quem já tinha imagem para proteger.

Já tinha uma vinificação determinada e comprovada de sucesso comercial e qualitativo. Já sabia o que ganhar com isso. Mas os DOC só foram disseminados por todas as regiões apenas em 1963, recebendo um reforço, em nome da qualidade, dos DOCG em 1970.

Nestes últimos anos, também a França expandiu e revisou seu sistema, consagrando outras tantas regiões, seja para – como sempre – garantir mercado conquistado, seja para consolidar uvas autóctones que estavam sofrendo risco de extinção, como no caso da uva Negrette que foi defendida pela AOC Fronton, que obriga a presença da citada em 50% e não aceita mais de 25% de uva que não tenha origem na região Languedoc, no sul da França, onde a invasão das uvas de exportação – as cabernet, a chardonnay e a Pinot Noir – estavam substituindo maciçamente o que se plantava anteriormente.

Tudo dito, este sistema de controle serviu para consolidar, proteger produtores e consumidores, e jamais para implantar algo de novo e desconhecido.DOCG

Quando o Vale dos Vinhedos criou seu IGT, e estabeleceu a Merlot como sua uva principal, pareceu-me uma precipitação comercial, apesar de concordar integralmente que a uva de Bordeaux dá-se muito bem nas encostas de Bento Gonçalves. Criar uma região demarcando um terroir pode ser bom para a Campanha, para as Serras Gaúchas, para os Vinhos de Altitude de Sta Catarina, para o Vale São Francisco e mesmo para a recente e promissora região dos Vinhos de Inverno, que abarca norte de São Paulo e sul de Minas Gerais.

IGT VVDiferente é instituir uma denominação de origem a produtos como o Queijo da Canastra, uma disputa longa entre produtores e a ANVISA, que proibia a comercialização de um queijo cuja matéria prima é crua, sem passar por pasteurização, como de resto, boa parte dos queijos franceses de massa mole. Era uma característica já determinada, historicamente consolidada, e o selo de garantia nada mais fez do que fazer justiça a quem já se diferenciava, mesmo que tenha aberto uma estrada que hoje é trilhada por novos produtores que se aventuraram a fazer o mesmo.

Mas decidir que já há suficiente experiência produtiva que defina como rainha a Tannat para a Campanha, a Syrah para os Vinhos de Inverno…acho que não. Vá lá que a Merlot seja a grande uva do Vale dos Vinhedos, mas com as voltas que o mundo dá, a Cabernet Franc voltou com tudo, deixou de ser aquele vinho desconcentrado, passou a ganhar a nobreza que tem em outras terras, St Emilion em particular.

Só engessa, dificulta novas descobertas e pesquisas com outras uvas. Por mais que o Pinot Noir em Nova Pádua e Flores da Cunha tenha se dado bem, por mais que a Tannat esteja dando grande potencial em Santana do Livramento, Dom Pedrito e arredores, melhor seria apenas apontar a origem sem dizer de suas uvas e de seu manejo. O resto é pura precipitação do pessoal de marketing que, como a ejaculação precoce, satisfaz apenas uma parte dos envolvidos no negócio, deixando o usuário com cara de Meu Deus, Que é Isso que aconteceu.

A comida e a sociedade.

Longe de ser o esboço de uma tese qualquer, este artigo se trata muito mais de uma reflexão de fim de tarde, não muito mais do que isso, totalmente descartável, não vale mais do que meia hora inicial de um velho jogo de futebol sem graça, desses que a pandemia está nos dando a oportunidade de ver de novo. Mas é fato. O mundo já sabia, em 1789, que havia uma farra gastronômica infindável entre as cortes do Velho Continente e suas imitações Novo Mundo afora.

Isso se conta abundantemente através de longa literatura, seja aquela francesa contemporânea, via penas como as de Balzac, seja como outros mais recentes, como a de Proust, só para citar dois grandes da história da escrita.

Os romanos e antes deles os gregos e antes deles os chineses, persas, babilônicos e outros povos bíblicos, já faziam festas exclusivas e privadas entre os bacanas, ou seja, entre os que frequentavam os bacanais, poderosos da política, da religião e das armas, onde se servia iguarias de mesa e cama.

A plebe, quase sempre escrava, estava lá para servir e depois documentar em casa o que e como aquela gente comia.

Desde sempre a imagem de poder político esteve ligado à fartura e a diversidade, elementos que só foram coletivos em sociedades não diferenciadas, onde a propriedade nunca deixou de ser comum à todos, sem distinção de qualquer tipo, a não ser aqueles privilégios consentidos aos sábios da aldeia, detentores das experiências anteriores, capazes de ditar regras aceitas por aquela comunidade.

Sexo e comida, regrados por catálogos de comportamento, fizeram de povos nômades como os judeus no deserto, rejeitarem o desconhecido, protegerem-se dos desejos do estômago e da genitália, quando em contato com outros povos e costumes.

Impuros tornaram-se aqueles deliciosos momentos de prazer, que traziam consequências indesejáveis, seja num mal que se esvai pela fossa, seja em barrigas que carregavam reproduções nada desejadas.

Ao contrário, estes mesmos caminhavam sem regras no triângulo formado pelos TOP 5% da pirâmide social de todos estes lugares.

O que comiam os frequentadores das coberturas da sociedade, enquanto olhavam de boca cheia o povo trabalhar?

De tudo que poderia ser transformado em iguaria pelos cozinheiros de qualidade, muitas vezes disputados a tapas entre os mais poderosos.

Tantos são os mitos que cercam estas iguarias, desde que se deu posse à propriedade das condições de preparar alimento, desde a posse da terra até o monopólio do moinho de trigo, desde o desvio do curso de rios para privilegiar este ou aquele poderoso até a inacessibilidade dos menos favorecidos a certos produtos que jamais serviram às classes trabalhadoras.

São tantos os exemplos.

A Revolução Francesa foi responsável pela promiscuidade positiva e desejada entre classes, na medida em que derrubou do altar uma parcela dos poderosos, aqueles que detinham a propriedade da terra e que só se mantinham no casulo por conta dos títulos de nobreza que deveriam querer dizer riqueza de antão, que agora só se mantinham às custas de impostos cada vez maiores. Deveriam ser uma forma plena de conteúdo, mas tinham deixado de ser. Com dívidas crescentes, os nobres vendiam sua exibição de riqueza em troca de trocados.

Do outro lado do mercado, os burgueses compravam os dante desejados título de nobreza e com eles – muitas vezes – as terras que os justificaram algum dia, pretendendo-se em condições de – agora sim e finalmente – ter acesso àquelas maravilhas decantadas por todos cantos, de como era bom ser poderoso.

Ou então, as terras tornaram-se minifúndios, terras que passaram a pertencer a quem nelas trabalhavam, como ocorreu com as propriedades dos grandes da igreja católica, particularmente em propriedades da Borgonha, que se tornou símbolo da defesa do conhecimento popular, seja na comida, seja no vinho.

É óbvio que não se chegou impunemente ao fim do século XIX, do ponto de vista dos privilégios. Estes vinham sendo questionados por tantas questões, mas nesta diversidade, tudo confluía, tudo se representava na mesa.

Até porque, os nobres destituídos de sua capacidade de gerar riqueza livravam-se de seus melhores funcionários, os cozinheiros que, sem trabalho, inventaram esta instituição tão conhecida por nós chamada “restaurante”, onde puderam expressar aos comuns – na medida que seu dinheiro era capaz de representar o fausto da Corte – o que se comia e como se comia entre os ricos.     

Ferramenta para Impulsionar o Paladar e os Sabores na Boca. Cada coisa que inventam, né?

artigo traduzido livremente e sem autorização do site “O Vinho Acessível a Todos” de Emmanuel Delmas – de 1º de Abril de 2020

Traduzo e edito livremente este artigo que me pareceu relevante de Emmanuel Delmas, um cara que eu sigo, meio por acaso, e compartilho minhas preocupações e reflexões. Suas conclusões nem sempre são as minhas, nesse caso, acho tudo bizarro, mas vamos ao artigo:

Sommelier & Consultant en vins, Paris

“Há um ano, me interesso seriamente por tudo que trata do gosto. De que maneira , fisiologicamente falando, os gostos funcionam na boca. Um cliente que se tornou amigo, é um conceituado cirurgião de implantes no 15º Bairro de Paris e dá estágios para cirurgiões maxilo-faciais e outros especialistas em implantes, o que inclui desdentados parciais ou completos, arcadas incompletas e outros casos complexos.

Nicolas chama cirurgiões de ponta, que ocasionalmente operam em live, para encontrar soluções e pistas de reflexão a situações delicadas. O legal é que Nicolas é enófilo e quer também conhecer e intervir na escala de conhecimento, ele me dá seu parecer sobre os diferentes praticantes.

Por seu amor pelo vinho o levou a me convidar por um projeto diferente: Ele me convidou a uma degustação harmonizada com um chef. Ele não entende não gosta de vinho branco. Ele consome “Que du vin rouge!”.

Montamos um pequeno time de degustação, convidando um amigo e colega para formarmos os três uma pequena confraria da fisiologia do gosto e tentar contribuir para o desvendar por quais canais o mecanismo do gosto se expressa, funciona. Para a primeira prova, trouxe duas belas garrafas de Cahors para degustarmos.

Vin de Cahors

A experiência foi tão boa que me convenci plenamente que a saliva é o veículo que leva a boca a reparar o gosto das coisas. Sem a saliva não há gosto! Lógica implacável!

Não saboreie o vinho, isso não serve a muita coisa, não adianta muito, é um desperdício!

UM TELEFONEMA INESPERADO! 

Um dia, Nicolas me liga pedindo que fosse a seu consultório imediatamente ‘Tenho uma ferramenta que pode ser de seu interesse!’

Em dois minutos estava lá, parecia um apelo urgente. Ele me diz que um de seus associados e um eminente pesquisador criaram uma ferramenta que permite exacerbar os gostos na boca! Ele me passou detalhes muito técnicos e me pediu para testar. A dificuldade começa pelo fato que a peça demora algumas semanas, é apenas um protótipo, mas tudo indica que é uma ferramenta revolucionária.

Le propulseur gustatif

O impulsionador

Genericamente falando, o aparelho se posiciona na boca e permite abrir a mandíbula ganhando maior espaço para facilitar as trocas de sabores e impulsionar o gosto! Entre outros inconvenientes, o objeto é produzido sob medida, e portanto pessoal, intransferível.

Vou testar por algumas semanas, em princípio durante o mês de Junho, quando estará a meu dispor. É fácil e colocar e indolor, 15 minutos antes de cada degustação, o tempo da saliva se habituar à sua existência e incorporá-lo, mas estará disponível apenas para alguns profissionais escolhidos a dedo.

Retornarei apenas eu o tenha em minha posse. Evidentemente estou curioso para ver no que vai dar! “

Harmonização – antônimo de desarmonia

saiu originalmente no jornal Vinho e Cia de 2020_02




Chamamos de harmonia o que os franceses, espanhóis e outros chamam de casamento (mariage/maridage), enquanto os italianos e ingleses chamam de emparelhamento (abbinamento/pairing). 

Não sei o porquê de não seguirmos a tradição dos outros latinos que remetem a relação entre comida e vinho a um par que deve agir no limite do ideal, seja dançando, conversando, transando…seja sendo partes de um mesmo par.

Mas harmonia é bom também, provavelmente por inspiração da harmonia musical, que é fio condutor da melodia, que estabelece o andamento, a aparição e permanência de cada instrumento, a eleição de cada um. Quem sabe a harmonia até seja melhor do que o casamento ou emparelhamento, porque não se trata de um adaptar-se às características do outro, com as necessárias modulações das arestas de cada parte, mas conceder a todas as características dos componentes um lugar de certa importância. 
A gastronomia sai da cozinha e pode se tornar eno gastronomia quando se junta ao vinho e vai à mesa.

Na mesa, ambas as atividades fazem parte de um todo que longe do isolamento das redomas, abrange som, arquitetura, decoração e talvez, principalmente, empatia.

Já vi vinho e comida na mais completa integração serem desintegrados por uma mesa vizinha povoada de 8 pessoas dispostas a discutir besteira, em voz alta para que o salão inteiro pudesse ouvir, impondo-se de modo a quebrar qualquer possível encanto.

Já vi casal se desfazendo em discussões caseiras diante de um bel prato de Spaghetti a Carbonara muito bem acompanhado de um Langhe Nebbiolo de boa estirpe. Já vi um belo Steak aux Poivres com Cornàs ir pro beleléu, porque no local o som era de Funk brasileiro e as paredes eram de laranja cheguei e os convivas estavam claramente fora de seus lugares! 

Tudo que acontece em torno da relação entre a comida sólida e o líquido fermentado de uva pode interferir.

Vale começar pelos pré-conceitos que cada um de nós carrega para a mesa. Quais? Todos, porque somos caixinhas fechadas em torno do gosto consolidado, difícil de assimilar qualquer coisa que coloque em risco nossas vãs certezas. Só para ficar num exemplo, se você for procurar em sites italianos quais são os melhores vinhos para o nosso Spaghetti a Carbonara aí de cima, verá citações de vinhos brancos do Lazio, do Lago di Garda e de Vêneto, antes de apresentar alternativas de tintos de uvas mais ácidas, como um Valpolicella não muito alcóolico. 

Obviamente, o pré-conceito – ao contrário do exemplo acima – pode tornar-se um escudo a favor da combinação proposta, não pela qualidade do casamento comida-bebida, mas pela tradição, por alguma referência afetiva escondida em algum lugar de nosso cérebro, uma associação quase que exclusiva entre você consigo mesmo. 

Uma vez em Roma me serviram numa Osteria bem simples um quitute diferente – tripa de cavalo enrolada numa pimenta calabresa seca, levadas ao forno de lenha e quase queimadas. O defumado me jogou para um vinho simples como o lugar, um Chianti de palhinha, quando insistentemente o garçom queria me fazer experimentar um Frascati envelhecido. Tanto fez que acabei por provar uma taça, para que então eu pudesse humildemente concordar que aquela era a melhor combinação que o meu dinheiro podia comprar e a casa podia oferecer.

É um pouco por isso, que gente séria acha que não é sério o trabalho de harmonização. Que você pode perfeitamente combinar com o que te vem na telha, aquele vinho que você estava ansioso por provar, mesmo que a comida possa parecer imprópria.

E daí, perguntam os defensores do Marriage Relax , “o importante é você sair da mesa satisfeito com o que comeu e bebeu, o resto que se dane!” Para estes, não importa tanto que há gente como François Chartier e seu ótimo livro “Papilles et Molécules: La Science aromatique des aliments et des vins” (Ed. La Presse), um tratado sério.

Não importa trabalhos como os consagrados por Hugh Johnson, Jancis Robinson, Enrico Bernardo e tantos outros. Para estes, o vinho tem que retornar a seu lugar de descontração, porque a tentativa de transformar em ciência os atos de comer e beber só atrapalham os prazeres da mesa.

Vale continuar pelos excessos de salamaleques que os servidores do salão se acostumaram a utilizar, movimentos circenses e tantas vezes ridículos – porque, depois de 200 anos, totalmente ultrapassados neste século dos Fake News- para fazer chegar à mesa pratos que não têm tanta pompa e tão pouco circunstância.

Falando em Osteria, um lugar sempre simples como um boteco de esquina de SP, fica fora de lugar um profissional querer servir como se ele estivesse trabalhando no Fasano.

Além disso, a presença de um sommelier muito invasivo e cheio de regras pode inibir desde o aconselhamento do vinho, um perigo, aliás, porque pode envolver uma parte muito sensível dos consumidores, o bolso. É possível até que o melhor seja um vinho local, mesmo que o melhor seja de fato o vinho mais caro, o vinho indicado, não digo que não.

E com que prazer comi no 1884, o Mallmann de Mendoza, numa época que a Paola Carossella ainda estava por lá, particularmente relaxado depois de ler esta frase que estava em algum lugar do cardápio: “Creemos que el maridaje es un ámbito ligero y superfluo donde la comodidad de la armonía se reclina en una ficta elegancia que anula lo posible. Lo posible es el motor del deseo; inspiración del drama, del arte, de la infidelidad y de la traición, que son algunos rasgos de la civilidad y la belleza humana”. “Ficta elegancia”…que luta contra o prazer possível. Pois digamos que o melhor para acompanhar suas ostras frescas apenas saídas do mar, temperada naturalisticamente com a água salgada do mar, tem como sua companhia dos deuses, um Sancèrre do limite entre o Loire e a Borgonha francesas. E daí, se você não tem nada que se pareça à sua disposição? Deixa de comer as ostras, troca de prato ou aproveita o frescor e a acidez do sauvignon Blanc Novo Mundo que tiver às mãos? É esta a proposta, me parece. É relaxar em nome do que se pode ganhar numa trip gastronômica.

Lembro ter escolhido o vinho mais barato da carta, desde a mesa que ficava ao lado da bancada dos pães, que exalava o perfume do tostado, do azedo, com um fundo de leveduras de cerveja. Pois melhor e mais importante que a comida escolhida, era esta localidade olfativa, esta proximidade com os pães que saiam daquele forno a uma temperatura excepcionalmente alta, que caracterizava aquela culinária. O vinho, elogiado pelo nosso atendente, cumpriu perfeitamente o papel de complementar todo extremo prazer olfativo que os pães nos traziam.

Penso complementar a excelente reflexão argentina acima, dizendo que vinho e comida devem ir se conhecendo aos poucos, através dos olhos, narizes, céu da boca e língua dos convivas. Deve se aquecer na cavidade bucal, misturar-se com a salivação e com os contrações e descontrações das mandíbulas, numa dança quase erótica, quase onanística. Porque dificilmente é de se compartilhar, mesmo que todos os degustadores confirmem e concordem com as suas impressões.

Está cabeça demais este papo, não é? Então vou parar por aqui.