IGT – Muito barulho por nada?!

Nerello di Mascalese pré-filoxera

Como todo produto que nasce no campo pela vontade do homem e não simplesmente pela força espontânea da natureza, o vinho nasce longe da terra, da chuva e do sol. Nasce na cabeça do agricultor/investidor, que almeja não perder o dinheiro que investirá.

Na hora que você escreve sobre rótulo, sobre o design do vinho, você está no campo do marketing. Quando você elege uma uva para plantar e transforma-la no seu produto, você está falando de potencial de qualidade, está falando do melhor que você pode fazer, mas também está falando de mercado, porque você não vai testar todas as uvas que existem, que com seus clones superam 20 mil opções entre as vitiviníferas.

Escolhas na vinificação, investimentos na praça de produção, escolhas nas garrafas no fecho, no rótulo, no estilo, no posicionamento do vinho, tudo isso passa pela imagem de mercado. 

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Salamanca do Jarau da Routhier&Darricarrere, Rosário do Sul, Campanha Gaúcha

Por isso vai cruzar duas curvas essenciais: o que vai bem naquela determinada terra que pretende investir e o que o mercado sugere que se plante.

Para chegar à primeira decisão, entidades como a Embrapa vão ajudar muito, mas não apenas elas. Geologia, topografia, clima, qualidade das cepas e seus clones, escolha de leveduras, vão trazer uma uva  apropriada. Ela pode ser ao mesmo tempo Grenache, Negrette, Cinsault, Gamay e Touriga Nacional, cada qual em uma parcela do lote, numa determinada encosta, com uma determinada insolação.

Estas determinações limitam as alternativas, deixa a decisão ser mais técnica, menos solta ao prazer do enólogo.

Os vênetos foram buscar na memória a uva Teroldego. A tradição foi atrás da Alicante Bouchet, cruzamento em laboratório de Garnacha/Grenache e petit Bouchet . A Martini & Rossi trouxe o método Asti e implantou as moscatéis.

Quando o Mario Geisse foi a Pinto Bandeira, foi quebrando pedra em pedra, até descobrir o solo mais permeável, que melhor se adaptaria à plantação de chardonnay e Pinot noir para espumantes. O casal de enólogos da Cordilheira de Santana sabiam como, quanto e quando plantar antes mesmo de começar os trabalhos.

Mas se fosse presa demais, jamais teríamos um Petit Verdot 100% na Abadia Retuerta, Ribera Del Duero, terra de Tempranillo.

NicolasJamais teríamos um Malbec de primeira linha, visto que o Nicolás estava seguindo os sentimentos do seu pai, que adorava os Malbec que plantara. Evidentemente, a mescla se dá numa verdadeira curva de comunicação, onde o novo é renovação de algo já solidamente implantado.

Jamais teríamos um vinho 100% Rufete ou 100% Rabigato, uvas secundárias em suas regiões, muitas vezes sofrendo o assédio constante das uvas dominante do mercado. Assim como jamais teríamos estes Barbera barricados fantásticos que o mercado aprova e comprova, tirando das costas da Nebbiolo toda a responsabilidade de fazer grandes vinhos no Piemonte italiano.

Determinar que um vinho foi feito com as uvas locais, plantadas lá, vinificadas com um determinado protocolo que envolve uva, hectolitragem, processo de vinificação etc. foi uma necessidade de mercados já constituídos. Nunca é demais lembrar que depois da 1ª Guerra Mundial, no inicio dos anos 20 do século XX, o mundo estava morrendo de sede de vinho, seja porque era época de festejar, depois de uma guerra fraticida, longa e sangrenta, mas também depois que se inventou o enxerto com pé de uva americana, o que salvou as vitiviníferas da sanha mortal da Filoxera.


O mundo queria sorver os grandes vinhos consagrados antes do pulgão exterminar as vinhas mais importantes daquele mundo. E como produzir? Mais da metade dos proprietários de Bordeaux estavam falidos, comprando títulos dos bancos de financiamento agrícola, se vendo obrigados a comprar uvas de outros lugares para tentar honrar os pedidos de compra.

Boa parte destes viam aí uma oportunidade imediata de se livrar dos problemas financeiros. Procedimentos fraudulentos foram useiros na época, comprava-se onde houvesse uva pra vender, seja na Argélia, seja na Sicilia, seja na Espanha.

Em 1930, diante de uma avalanche de decepções, devoluções, propaganda negativa, o governo francês decidiu que devia não apenas financiar as dívidas acumuladas dos produtores pré-falimentares como estabelecer normas rígidas de controle de qualidade, formando então as famosas Appellation d’ Origine Controlée, AOC.

Na mesma época, a região da Toscana, na Itália fazia a mesma defesa de seu produto mais importante, do ponto de vista comercial – o Chianti, único produto não francês a ter inclusive suas garrafas certificadas em solo gaulês, com sua garrafa bojuda e coberta de palha, que de longe a identificava nas gôndolas. Seu sucesso inspirava imitações e mil Chianti foram surgindo, por toda a Toscana e mesmo fora dela. Sendo assim, criou-se a Denominazione di Origine Controlata Chianti, para depois de 3 anos, criar uma DOC específica para os Chianti Classici, a guisa de defender os produtores originais, que se concentravam entre Siena e San Giminiano.

414Ou seja, no início, não havia outra intenção que não proteger a imagem de quem já tinha imagem para proteger.

Já tinha uma vinificação determinada e comprovada de sucesso comercial e qualitativo. Já sabia o que ganhar com isso. Mas os DOC só foram disseminados por todas as regiões apenas em 1963, recebendo um reforço, em nome da qualidade, dos DOCG em 1970.

Nestes últimos anos, também a França expandiu e revisou seu sistema, consagrando outras tantas regiões, seja para – como sempre – garantir mercado conquistado, seja para consolidar uvas autóctones que estavam sofrendo risco de extinção, como no caso da uva Negrette que foi defendida pela AOC Fronton, que obriga a presença da citada em 50% e não aceita mais de 25% de uva que não tenha origem na região Languedoc, no sul da França, onde a invasão das uvas de exportação – as cabernet, a chardonnay e a Pinot Noir – estavam substituindo maciçamente o que se plantava anteriormente.

Tudo dito, este sistema de controle serviu para consolidar, proteger produtores e consumidores, e jamais para implantar algo de novo e desconhecido.DOCG

Quando o Vale dos Vinhedos criou seu IGT, e estabeleceu a Merlot como sua uva principal, pareceu-me uma precipitação comercial, apesar de concordar integralmente que a uva de Bordeaux dá-se muito bem nas encostas de Bento Gonçalves. Criar uma região demarcando um terroir pode ser bom para a Campanha, para as Serras Gaúchas, para os Vinhos de Altitude de Sta Catarina, para o Vale São Francisco e mesmo para a recente e promissora região dos Vinhos de Inverno, que abarca norte de São Paulo e sul de Minas Gerais.

IGT VVDiferente é instituir uma denominação de origem a produtos como o Queijo da Canastra, uma disputa longa entre produtores e a ANVISA, que proibia a comercialização de um queijo cuja matéria prima é crua, sem passar por pasteurização, como de resto, boa parte dos queijos franceses de massa mole. Era uma característica já determinada, historicamente consolidada, e o selo de garantia nada mais fez do que fazer justiça a quem já se diferenciava, mesmo que tenha aberto uma estrada que hoje é trilhada por novos produtores que se aventuraram a fazer o mesmo.

Mas decidir que já há suficiente experiência produtiva que defina como rainha a Tannat para a Campanha, a Syrah para os Vinhos de Inverno…acho que não. Vá lá que a Merlot seja a grande uva do Vale dos Vinhedos, mas com as voltas que o mundo dá, a Cabernet Franc voltou com tudo, deixou de ser aquele vinho desconcentrado, passou a ganhar a nobreza que tem em outras terras, St Emilion em particular.

Só engessa, dificulta novas descobertas e pesquisas com outras uvas. Por mais que o Pinot Noir em Nova Pádua e Flores da Cunha tenha se dado bem, por mais que a Tannat esteja dando grande potencial em Santana do Livramento, Dom Pedrito e arredores, melhor seria apenas apontar a origem sem dizer de suas uvas e de seu manejo. O resto é pura precipitação do pessoal de marketing que, como a ejaculação precoce, satisfaz apenas uma parte dos envolvidos no negócio, deixando o usuário com cara de Meu Deus, Que é Isso que aconteceu.

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